Embate

Intolerância política está na raiz da sociedade, dizem especialistas

Maneira como o país foi ocupado pode explicar desrespeito à opinião contrária; falta de coesão dos grupos causa série de doenças

Por Sávio Gabriel
Publicado em 08 de junho de 2020 | 03:00
 
 
 
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Não é de hoje que a discordância de opiniões, no Brasil, tem ultrapassado os limites do debate saudável e se materializado em comportamentos cada vez mais extremados. De xingamentos em redes sociais, passando pelo estremecimento de relações afetivas e familiares e chegando até mesmo a agressões físicas, a intolerância política vem dando o tom do debate em todo o país. Segundo especialistas, esse comportamento vai muito além de um fenômeno recente e está na raiz da formação da sociedade brasileira com a chegada dos portugueses, em 1500.

“O Brasil pós-conquista sempre foi intolerante. A maneira como país foi ocupado pelos portugueses e por outros grupos que disputaram os territórios que antes eram dos indígenas foi extremamente violenta”, aponta Ana Lúcia Schritzmeyer, professora do Departamento de Antropologia e coordenadora do Núcleo de Antropologia do Direito da Universidade de São Paulo (USP). Ela ressalta que a intolerância política brasileira é um aspecto social, historicamente construído.

Nesse cenário, explica ela, grupos que pensam diferente se encaram como inimigos perigosos, ignorando a diversidade de pensamento e comportamento que é inerente aos seres humanos. “A diversidade humana é a regra, jamais a exceção”, frisa.

É aí que começam os problemas de convivência e a intolerância se materializa. E é cada vez mais comum que essa falta de concordância exploda no ambiente virtual, com discursos de ódio, ataques e até ameaças de morte. “O problema não é a internet. A questão é para que fins esses meios se prestam”, pondera Schritzmeyer, pontuando que a intolerância não seria menor sem a presença das redes. “Nos anos 1930 e 1940, não havia internet, e o nazismo e o fascismo se implantaram no mundo”, lembra.

“Qualquer relação que estabelecemos com os outros é sempre baseada em elementos primitivos, no sentido de que estão presentes desde a antiguidade”, ressalta o psicólogo social Cláudio Anastácio de Paula. Ao longo da evolução humana, ele explica que sobreviveram os grupos que eram “desconfiados” por natureza e que precisavam identificar traços mínimos de que o outro não representava uma ameaça.

Nos dias atuais, o mesmo mecanismo para identificar o inimigo acaba sendo uma das raízes da intolerância política. “A pessoa sinaliza qualquer gesto, e, por mais que seja imperceptível, temos um mecanismo de identificar o opositor”, explica.

É por isso que, na avaliação do especialista, as pessoas não conseguem manter um diálogo saudável. “A pessoa fala 15 coisas nas quais concorda comigo, mas aí tem um ponto diferente. O que eu escolho para comentar? Justamente esse ponto”, completa.

 

Reflexo

Além do impacto social, com a falta de coesão dos grupos, é preciso observar como a intolerância política se reflete no indivíduo. “Se for algo ligado ao discurso hegemônico, que hoje é o do bolsonarismo, a pessoa (vítima) ainda tem um conforto grande por haver uma estrutura que dá suporte”, explica Anastácio, referindo-se ao grupo cada vez maior de pessoas que não aprovam a conduta do presidente.

O desconforto e a tristeza são inevitáveis, já que, segundo o especialista, parte da identidade do indivíduo é atacada. “São pessoas que encontraram nesse desenho social e político algo que sintoniza com os valores que construiu e aos quais foi apresentada desde jovem”, pontua. Já quando a pessoa não encontra respaldo, a sensação de abandono é inevitável, e aí começam a surgir reflexos na saúde. Doenças como ansiedade, fobia social e depressão são as mais comuns.

 

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