Para sobreviver ao parto, Bizarro já teve que penar. Sua mãe, uma vira-lata com leishmaniose, precisou ser socorrida com uma cesariana. No tumulto que se instalou, o irmão morreu, e a perna direita dianteira do próprio Bizarro saiu totalmente do lugar.
Chegando ao nosso lar com um mês de vida e apenas três patas funcionando, o filhote se arrastava de pescoço no chão para tentar alcançar as cadelas que não queriam saber dele, daquela coisa indisciplinada e torcida que parecia ter caído do céu e se espatifado no quintal de nossa casa.
Mais um mês, e uma veterinária-ortopedista fez o milagre de recolocar em seu devido lugar a perninha, já bastante atrofiada. Entusiasta da vida, bastaram-lhe 48 horas para arrancar os curativos, colocando à mostra o peito todo costurado que sangrava sob o esforço de pular e de se fingir normal. Chorava nos tropeços, na queda das escadas e matava de pena quem o enxergava com aqueles remendos. O pequenino Bizarro conseguia assim conquistar carinho em profusão que lhe rendia o encanto de viver.
Embora feliz, os contratempos deixaram o “menino de casa” meio torto e caído para a frente. Mantê-lo quieto era um desafio, sobretudo depois da cirurgia, que lhe conferiu perspectivas de convivência normal com as cadelas adultas, com direito de se deitar entre elas para tomar sol e dormir acalentado.
De um branco cintilante manchado de preto corvino, cores herdadas do terrier do vizinho, lembrava o cachorrinho de Carlitos. Alegria pura, olhar atento e meigo, não parava um só momento de roer móveis, tapetes, chinelos, de arrastar meias para o gramado, devorar caixas de papel e gravetos insípidos que, enquanto duravam, poupavam estragos dentro de casa. Só à noite, de baterias descarregadas, caía num sono agitado, de sonhos que o faziam sobressaltar, rosnar e movimentar as patas.
Adorava subir no sofá e dormir com o focinho apoiado nas pernas de alguém, nas minhas em especial. Com ele, como com os demais filhotes que criamos, foi necessário ter paciência para ensinar-lhe que o lugar certo de fazer xixi é fora de casa. Aprendeu depressa.
Por que Bizarro? Pelas circunstâncias um tanto estranhas que marcaram seu nascimento e por não ter um único pelo que lembrasse a mãe. Ele era diferente, era, segundo minhas filhas, bizarro.
Até uma terça-feira de uma longínqua Semana Santa, eu e ele éramos os dois “homens” da casa no meio de oito “mulheres” de duas e de quatro pernas. Depois, na Sexta-Feira da Paixão, eu era o único.
Sobre ele, bom menino, pesava a castração que estávamos estudando fazer, quando a leishmaniose, doença que já tinha levado sua mãe, estourou arrasadora. Não tinha mais o que fazer.
Bizarro foi levado ao veterinário que o assistiu nascer e lá, com pesar, encerrou suas peripécias terrenas com uma injeção. Seus esplêndidos olhos se apagaram ao completar seis meses e dez dias de vida, inesquecíveis para nós de casa.
Para confirmar sua veia excêntrica, que começou no equinócio de primavera, se foi naquele de outono. Assim não conheceu o frio do inverno nem a decadência da velhice. Foi um período curto que não deveria criar laços mais profundos. Mas Bizarro foi um vira-lata especial, mais que tantos outros que nascem e morrem antes de fazer amigos.
O “menino” superou todas as expectativas, se fez amar como nenhum outro cãozinho. Confesso que perdê-lo muito me abalou. Passaram-se os dias, e a falta dele foi maior que tudo que imaginei ser possível.
Pensando bem, sinto que Bizarro, como os bons cãezinhos de Deus, tinha se dado conta de que teria que se despedir muito em breve. Tomou ciência de seu destino quando uivou a noite toda na varanda, sem raspar a porta, sem escândalo, bem baixinho. Uivou toda a melancolia que tinha no peito costurado.
Li em algum lugar que o cão uiva para pedir ajuda aos anjos. Às vezes uiva à procura de acasalamento para cumprir o dever de perpetuar sua espécie, mas uiva também para pedir força a Deus, uiva pela morte de um amigo ou quando a morte dele se aproxima.
Bizarro uivou na noite chuvosa, num tom baixinho, afinado, angelical e perturbador.
Uivou divinamente para se despedir do mundo que para ele se complicou. Passei horas a ouvi-lo e a rezar junto com ele para que os anjos nos ajudassem. Isso até o sol raiar.
Depois daquela noite, o filhote aquietou-se, parou de roer coisas e se aproximou ainda mais, como a pedir ajuda. Sua bateria, dava para sentir, já não recarregava mais. Passava horas com o focinho estendido entre as patas e os olhos abertos, como se estivesse assistindo a um filme mudo numa tela que só ele enxergava. Parou de correr e de morder as cadelas.
No Domingo de Ramos não largou um momento do meu pé. Aproveitamos o dia inteiro. Entre os últimos carinhos, Bizarro mereceu o apelido de “cadete das Agulhas Negras”, “piloto de Boeing” e no fim de “astronauta”. Ele tinha estofo, inteligência, pouco importava a condição de cãozinho, queria ser mais do que isso. Deus, em sua infinita generosidade, sei que permitirá um dia ao bom “menino” ser “alguém”. Quem sabe, chegaremos lá juntos, como bons amigos dividindo a mesma “espaçonave”, cheia de seres maravilhosos e de um avatar nos orientando.
Em breve, ou em questão de milênios, nós dois, sonhei após sua despedida, navegaremos em segurança por luas, estrelas e planetas de cores ainda desconhecidas, mundos deslumbrantes, correntes celestiais ao som de harmonias mais encantadoras que o uivar de um filhote solitário.
Por um átimo, naquela noite vi Bizarro se transformar num jovem piloto, bonito com um farda alva cintilante e detalhes pretos, sorrindo radiante, satisfeito de si, ao comando de uma nave com combustível inesgotável, velocidade da luz e uma caixa de primeiros socorros com um remédio que sarava qualquer mal, doença ou tristeza.
Dizem que Bizarro não sofreu, se comportou bem até o fim. Apenas dormiu. Em compensação, eu me senti devorado pela tristeza, morrendo de saudade inconsolável.
Penso que poderia ter feito mais por ele, penso em outros meninos que o destino leva a fechar os olhos sem que tenham tido tempo de errar. Haja compaixão, a tristeza do mundo todo desabando em mim e transbordando descontroladamente pelos olhos. Perdi o amigo que nunca pediu, o “menino” carinhoso, o astronauta; é preciso ainda esperar vidas inteiras para matar a saudade, para reencontrar Bizarro, que me ensinou muito daquilo que ainda não sabia do amor por um simples filhote.
E como me doeu.
Dedico essa crônica – escrita há 12 anos e revista agora – para aqueles que sofrem por uma despedida que parece eterna, mas é apenas uma separação momentânea até o dia do reencontro. Consolem-se e se entristeçam, nós todos somos eternos! Em determinados momentos se apagam as luzes da Terra para as estrelas clarearem a imensidão.