O ser humano mergulhado na crueza das lutas terrestres, quase sempre, cai na insensatez de tentar raptar de Deus o que é apenas dEle. Os raros sábios sabem quanto inútil é emitir julgamentos, aventurar-se em vinganças e castigos que “a Deus pertencem”.
Embora desafiadora, a compreensão da lei do Karma, lei do retorno ou das causas e dos efeitos que se interligam, manifesta-se na ação da justiça divina, inexorável, que atua no prazo e na forma mais eficazes.
Parece enganar a todos quando adia a dispensação de prêmios e punições, levando o saldo para outras vidas ou atingindo pessoas próximas e queridas.
A mitologia da Antiga Grécia mostrava que a via do sofrimento é inevitável. Prometeu acorrentado na rocha (parte mais densa da matéria) com a águia comendo seu fígado, que se regenerava constantemente; Sísifo rolando continuamente a pedra até o cume para vê-la cair ao ponto de origem; Ícaro voando cada vez mais alto até o sol queimar suas asas; Midas transformando em ouro tudo e até a filha, para depois implorar aos deuses voltar ao normal para poder se alimentar.
A verdadeira missão de uma vida foge ao homem comum. Cada um tem a sua diferente daquela dos outros. Na natureza tudo é único e sem igual. Quando não é possível perceber pelo olhar, a lupa revela centenas ou milhares de diferenças até em gêmeos que nascem do mesmo óvulo e do mesmo espermatozoide.
Um cabalista clarividente asseverou que cada criatura terrestre é determinada por três forças provenientes do céu empíreo, do céu zodiacal e da natureza do planeta a que pertencemos. Do primeiro vem a semente universal “não criada”, ou centelha divina, espírito universal; da segunda, o sal da vida, ou energia e tendência ao destino emprestada pelo Universo; e a terceira força é emprestada pelos elementos do planeta: fogo, ar, terra e água, e matéria disponível na genética familiar.
O cabalista disse que as lágrimas fertilizam as sementes; o sofrimento e os esforços robustecem o caráter; a tristeza e o isolamento abrem a via para as melhores oportunidades.
Nos últimos dias de calamidades e dilúvio, muitos foram castigados. Como prefeito, percorri locais desoladores. Assisti à retirada dos escombros sobre corpos, o desespero de parentes e amigos, a incredulidade de quem em poucos segundos viu a própria moradia e parco patrimônio desaparecer. Vi reações de todas as espécies: desabafos, inconformismo, lágrimas, revolta, preces, mãos estendidas.
A chuva sem dar trégua, castigando os castigados, encostas desmoronando, rachaduras se abrindo mais a cada pancada. As palavras para convencer a sair daquilo que mais não se sustentava, mas representava “tudo” da família.
Nos encontros procurei mostrar outros aspectos da tragédia, como a oportunidade escondida naquele sofrimento. Mostrei que, cadastrando-se entre os atingidos desabrigados, como de fato era para eles, terá acesso facilitado para uma moradia muito melhor. Mostramos que os projetos já estão prontos, que haverá locais seguros e sem insalubridade e precariedade.
Quando na sexta-feira, de botas e colete da Defesa Civil, me preparava para sair da visita de um local onde 51 famílias estavam sendo retiradas pelo risco iminente de inundação, já abrindo a porta do carro, mais uma pessoa me convidou para entrar em sua casa, “condenada”. Vi seus olhos avermelhados, a esposa com semblante desconstruído e atônito, e aceitei entrar e visitar a casa. Um primeiro andar bem-acabado, num lote de terra de 6 m por 15 m. Ele soluça: “Sou cearense e pedreiro, essa casa eu construí e nela gastei o que tinha e aquilo que estou devendo. Perdi minha vida”, lágrimas dele e da esposa escorrendo sem parar. Moradia bem-acabada com boa cerâmica e cada tijolo furado colocado com perfeição, portas e pisos, louças de banheiro, pia de cozinha e armário, todos de primeira. “Minha vida acabou...”, repetia, baixando a cabeça.
“Pois é, seu João, você acredita em Deus e precisa continuar, porque nada acontece por acaso, sua vida tem 42 anos e ainda nem está no meio do caminho... nada está perdido. Sua família está viva, você está forte, nós vamos te ajudar...”
Mostrei a ele que haverá que construir outras casas que se assemelham, e muito, à dele, e que podemos ajudá-lo “a organizar uma microempresa”. “Com sua capacidade você vai construir um dúzia dessas casas ou mais, inclusive a sua, e ganhar um bom e justo dinheiro”.
Nisso apresentou que ele já constituiu microempresa para prestar serviços de construção “junto com outros cearenses” da cidadezinha de onde vieram.
Enxugou as lágrimas, e marcamos para terça-feira recebê-lo e ajudá-lo para se habilitar nas construções e reconstruções que precisamos contratar no momento pós-diluviano, assim que o primeiro raio de sol aparecer.
E como tinha acontecido em quase todas as visitas do dia, nessa também deu para entender que “o mal serve ao bem”.