Bernardo tem 4 anos, cursa o primeiro período e acaba de aprender como recortar as margens de seu dever de casa seguindo perfeitamente as linhas retas. Diante das efusivas felicitações de seu pai, Bernardo quis saber se jornais e rádios iriam noticiar a novidade. A lógica do raciocínio de Bernardo, por ingênua que pareça, serviu como orientação básica das comunicações coletivas humanas durante alguns milhares de anos: chama atenção, e por isso merece divulgação, aquilo que é especial por algum motivo. Seja uma realização humana extraordinária ou mesmo um desvio de conduta cruel e sórdido, pouco importa: é a fuga do cotidiano que tradicionalmente interessa às pessoas e, por isso, ganha os holofotes.
Há poucos anos, não mais do que duas décadas, esse paradigma deixou de reinar sozinho. O comum, regular, ordinário agora também fica em evidência, impulsionado por uma combinação de novas tecnologias de comunicação e redes sociais disseminadas. O comum foi para as telas sem nada de especial que justificasse essa exposição. Curiosamente, essa inversão de lógica agradou à maior parte do público, tanto que hoje temos, pelas redes sociais, uma busca de quase todos pela exposição do cotidiano “comum”.
Há uma explicação, de certa forma, estrutural para essa grande mudança ocorrida nas pessoas: trata-se da diversificação dos referenciais que tínhamos como base para formar nossas identidades pessoais e coletivas. Por volta do século XV, com o surgimento de algumas das grandes nações europeias, foi forjada também a concepção de que essas deveriam servir como o principal referencial na vida das pessoas comuns. Essa lógica ganhou força ao longo do tempo, tornando-se uma ideia hegemônica no mundo, sobretudo a partir do século XIX: o mundo se dividiu em nações, e, separadas pelas fronteiras dessas, cada pessoa deveria se autodefinir a partir da unidade política à qual pertencesse. As identidades pessoais passaram a ser, antes e acima de tudo, nacionais.
A era das “identidades nacionais” coincidiu, portanto, com um período de nacionalismos extremados. Até que, no final do século XX, o poder dos governos declinou na mesma velocidade com que se popularizaram os meios de comunicação. Cada vez mais, se tornou possível às pessoas ter acesso a outras referências culturais e, assim, construir para si as mais diversas identidades. Afinal, somos aquilo que pensamos, e só podemos pensar a partir dos estímulos que chegam até nós.
A diminuição no poder do Estado para atuar como referencial cultural único na vida das pessoas, ao que parece, teve o efeito de eliminar a hierarquia, o distanciamento tradicionalmente obrigatório que se tinha entre o exemplo e as pessoas que deveriam se inspirar neste para definir suas identidades pessoais. É este o mundo em que vivemos: o mais trivial pode servir como referência para toda uma geração, desde que caia no gosto da maioria.
O jovem Bernardo que se prepare, portanto, pois a mediocridade pode virar uma meta a ser perseguida em seu futuro.