A formulação do Orçamento Geral da União transita como projeto de lei no Congresso, para ser em seguida sancionada pelo presidente da República. Segue as regras constitucionais e passa por acirrado debate, já por envolver centenas de bilhões de reais em verbas públicas.
É preciso ter presente que, antes de ser discutido, é antecipado pela aprovação de outra lei, que é conhecida como LDO, ou Lei de Diretrizes Orçamentárias. Na LDO estão cravados os critérios que norteiam e delimitam os pontos principais do Orçamento, como as cotas atribuídas a cada setor da administração pública, as prioridades na saúde, educação e demais itens.
O governo envia ao Congresso uma proposta de execução do Orçamento que se baseia em previsões de arrecadação e despesas. Quase tudo é apenas uma previsão, já que para o futuro são imponderáveis as variantes, a não ser para Deus. As previsões iniciais são corrigidas no decorrer do exercício, quando a proximidade dos resultados já está à vista.
As variações podem ser muito significativas, como aconteceu entre 2014 e 2017, quando o Brasil previa crescer e teve quedas seguidas de quase 4% do Produto Interno Bruto (PIB) a cada ano. Muito teve que se adiar, suspender, cancelar, e isso estourou os déficits da União e, em decorrência, dos Estados e dos municípios.
Colaboram para as previsões do Orçamento da União os estudos do Ipea, do IBGE, da Fundação Getulio Vargas e de outros entes de reconhecida credibilidade. Os dados são tomados como base para se estabelecer a expansão ou retração do PIB, a inflação, o valor cambial da moeda etc.
Pois bem, essa explicação não se volta a quem já “sabe”, mas para quem ainda não estudou ou teve acesso aos meandros da administração pública. Pessoalmente, tive experiência participando na formulação do Orçamento da União, por 16 anos seguidos, como parlamentar federal, e “tive que” aprender as regras, a lógica e o desenrolar dessas obrigações.
Portanto, com essa experiência, estranhei nos últimos dias as informações distribuídas a ferro e fogo pela mídia e por entidades de um suposto corte de 30% do Orçamento da educação. Isso seria um corte de R$ 37 bilhões. Ora. Parece ter uma exploração da ignorância, justificada em 99% da população, que não tem conhecimento esmerado nem obrigação de tê-lo em questões complexas.
Primeiramente: um Orçamento contempla previsões, em segundo plano a execução do Orçamento deve se adaptar à realidade da arrecadação e das metas aprovadas. Existe também um vício congênito no Orçamento aprovado pelo Congresso: aumenta-se a previsão de arrecadação para poder contemplar mais pleitos e não brigar em cortes que depois o governo terá que obrigatoriamente realizar. O inchaço das previsões é regra consagrada que gera o contingenciamento (suspensão da previsão de despesa).
Já no final do exercício, com execução praticamente concluída, os restos podem se deslocar para o Orçamento seguinte ou, mais raramente, ser cancelados. Aí é outra negociação com o Congresso.
No setor de educação, as despesas obrigatórias na última década chegaram perto de 90% do Orçamento total. Por isso, veicular um “corte de 30% da educação”, com viés catastrófico, é confundir as cartas no momento em que o ministério anuncia um contingenciamento de R$ 2,08 bilhões, ou de 1,69% do Orçamento do Ministério da Educação, que em 2019 é de R$ 122,9 bilhões. A educação continua com R$ 120,1 bilhões, um dos maiores Orçamentos da história nacional.
O corte se refere aos gastos “discricionários”, inicialmente previsto em R$ 6,99 bilhões, deixando R$ 4,91 bilhões à disposição das universidades federais, que continuam com a integralidade das verbas obrigatórias (salários, cerca de 88% do total).
Não teve corte de repasses para o ensino fundamental nem para o médio, que são a base da educação.
Embora R$ 2,08 bilhões possam ser bem empregados em universidades, essa prática de contingenciamento (adequação ao nível de receitas arrecadadas) não nasceu agora. Existe desde sempre. Nos últimos dez anos houve contingenciamento (apenas em dois não teve). Os valores variaram de sucessivos cortes de R$ 1,9 bilhão em 2010 (Lula) a R$ R$ 10,5 bilhões em 2015, primeiro ano do segundo mandato de Dilma Rousseff, quando atingiu 10% do total do Orçamento anual do ensino. Nos últimos dez anos, a média de queda foi de R$ 3,1 bilhões por ano, ou cerca de 2,8% do Orçamento anual.
O anúncio de contingenciamento de 2019, primeiro ano de Bolsonaro, até deveria ser festejado por seu “mísero” 1,69% das verbas anuais, pois seria o terceiro menor corte da década e um terço abaixo da média do período. No primeiro ano do segundo mandato de Dilma Rousseff, o corte foi de R$ 10,5 bilhões e 590% superior (0,10/0,0169 = 5,90 x 100 = 590%) em relação ao atual de 2019.
A reação que tomou conta das ruas parece desproporcional. Multidões agora e ninguém em 2015.
Sem entrar no julgamento, mas uma reflexão: no Brasil temos 50 milhões de pessoas abaixo da linha de pobreza, 13,1 milhões de desempregados, a maior carga tributária da América, a mais arcaica burocracia do planeta, e ainda sabe-se que uma reforma da Previdência (apenas tocando nos privilégios, e não nos trabalhadores com teto de até cinco salários) geraria um aumento do PIB de 5% a 6% ao ano por uma década, ou mais 7 milhões de empregos até 2022. Acrescente-se que, em decorrência, a renda per capita poderia dobrar em termos reais, inundando o Brasil de um progresso “chinês”.
Continuando, podemos dizer que é revoltante ter uma superlotação de cadeias e 62 mil homicídios por ano, verdadeiro extermínio, além de milhões de dependentes químicos, de estradas lastimáveis, etc., etc. Enfim, um país que tem problemas imensos e fica em casa assistindo televisão com o pescoço dobrado sobre seu smartphone, sendo confundido por cortes de R$ 2,08 bilhões (fonte: Andifes) de despesas discricionárias, enquanto o país anda à deriva por questões infinitamente maiores e absurdamente mais graves.
1,69% não é 30%
Quase tudo é apenas uma previsão, já que para o futuro são imponderáveis as variantes, a não ser para Deus
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