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Adultos falam sobre os dilemas e perspectivas

Por Juliana Siqueira
Publicado em 28 de setembro de 2013 | 03:00
 
 
 
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Quando vai montar o seu currículo, a produtora de eventos Patricia Rodopiano, 42, talvez precise de um número bem maior de páginas do que grande parte das pessoas. Constam em suas experiências profissionais nada menos que 17 ocupações diferentes, que guardam poucas semelhanças entre si. Ela já foi professora de natação, astróloga, animadora de festa infantil, gerente de uma grande rede de fast food, locutora de rádio...

Patrícia é portadora do Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), cujos interesses fugazes e a dificuldade para permanecer em algo que um dia despertou satisfação são um dos sintomas.

Associado comumente a crianças, o transtorno atinge cerca de 4% dos adultos em todo mundo, segundo dados da OMS, e a dificuldade do diagnóstico nesta fase da vida é um dos maiores desafios. Patrícia recebeu o seu há cerca de sete anos, quando estava com 35. A descoberta tardia, de acordo com ela, resultou em um sentimento de perda de coisas que teriam sido muito importantes em sua vida, além da certeza de que várias situações poderiam ter tido desfechos bem diferentes. O diagnóstico eficaz e o tratamento possibilitam minimizar os reflexos do transtorno e levar o portador a ter uma vida com menos dificuldades.

De origem predominantemente genética, o transtorno tem sintomas que podem interferir em diversas atividade no dia a dia, como desatenção, impulsividade ou a tendência de postergar tarefas, levando o indivíduo deixar muitas delas iniciadas e inacabadas, causando um grande sentimento de frustração. Além disso, os portadores de TDAH enfrentam a pouca informação alheia sobre o tema e o preconceito daqueles que classificam as manifestações do transtorno como “preguiça”, “invenção” ou até mesmo “frescura”.

“No colégio, sofri bullying de colegas e professores. Se hoje há tantas dúvidas sobre o problema, imagine há 20 anos. No meio profissional, encontrei mais preconceito e falta de informação do que no colégio. Em uma época, pedi ao meu médico para que me desse um laudo, pois uma chefe disse que eu ‘não deveria usar esse problema como desculpa’", diz Camila Lataliza, 31, diagnosticada aos 24 anos.

Diagnóstico

Quando Camila não tinha o diagnóstico em mãos, os problemas eram muito maiores do que o relatado com a chefe, pois não envolviam somente a falta de conhecimento alheia e, sim, a própria, o que pode ser bastante doloroso. “A baixa autoestima foi inevitável”, revela. Por isso, é muito importante estar atento aos sintomas, para que a pessoa possa ajudar a si mesmo ou àqueles que estão ao seu redor.

Uma análise médica cuidadosa é indispensável, pois descobrir o TDAH pode não ser tão fácil. Uma das questões que dificultam o diagnóstico, de acordo com Antonio Alvim, psiquiatra do ambulatório de TDAH da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é o fato de o TDAH estar associado a outras doenças. “É extremamente comum que ele esteja acompanhado de quadros depressivos ou quadros de ansiedade’, diz. Assim, muitas vezes, trata-se a depressão ou a ansiedade, sem chegar até o transtorno.

Prejuízo social

Como obrigatoriamente os sintomas aparecem na infância, é preciso que o paciente relate como era essa fase de sua vida. Em geral, as crianças com TDAH são mais inquietas, além de apresentar falta de atenção em atividades, como, por exemplo, responder apenas algumas questões de uma prova, apesar de saber toda a matéria.

“Quanto mais cedo descoberto, melhor. Conhecimento é acumulativo e os déficits vão se mantendo ao longo dos anos, além dos prejuízos que podem existir nas habilidades sociais e acadêmicas”, diz.

Para Iane Kestelman, psicóloga e presidente da Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA), mais do que algo individual, é preciso que as pessoas tenham o entendimento de que o TDAH afeta a todos nós, direta ou indiretamente. “Isso recai socialmente, atinge a família, o trabalho, a saúde. Pessoas que têm TDAH podem ser mais propensas ao desemprego, a se envolver em acidentes de trânsito, por exemplo. O diagnóstico tira do sujeito a sensação de que ele é um fracasso”, diz. “Tudo o que uma pessoa que tem TDAH não precisa mais é de sofrimento, de pessoas perguntando se o transtorno existe mesmo, impendindo-as de avançarem”, desabafa.

Em tratamento, Patricia se vê focada em seus objetivos e acredita que pode, ao contrário do que foi frequente em sua vida, terminar aquilo que planejou, mantendo-se motivada para tal. “Preciso muito sentir, viver a experiência de realizar algo do principio ao fim, de forma prática. A necessidade extrema de realização pessoal e profissional está exigindo de mim uma concentração de esforços em direção a isso”, diz ela, que sonha terminar a faculdade de psicologia, a qual cursa atualmente.

Sobre os benefícios de descobrir e tratar o TDAH, Camila diz: “Hoje sou feliz e realizada”.

Sintomas

- Somente em 1980, o TDAH em adultos foi reconhecido pela Associação Psiquiátrica Americana. Veja alguns dos sintomas.

- Dificuldades para manter a atenção em atividades de menor interesse ou mais trabalhosas.

- Esquecimentos de compromissos, responsabilidades estipuladas e de informações menos relevantes.

- Dificuldades para iniciar atividades e tendência a postergar algumas tarefas.

- Deixar tarefas incompletas.

- Dificuldades com a estimativa de tempo e administração do tempo para atender as demandas.

- Dificuldades para estabelecer prioridades.

- Dificuldades para conduzir muitas ações simultaneamente.

- Ações ou falas impulsivas, impaciência.

- Hipersensibilidade a criticas e irritabilidade.

- Dificuldades para perceber suas potencialidades e dificuldades.

- Aversão por tarefas monótonas.

- Labilidade motivacional (interesses fugazes ou dificuldade para persistir em seus interesses).

- Baixa autoestima.

Fonte: Walkiria Boschetti, neuropsicóloga do Hospital Israelita Albert Einstein

Tratamento e novos hábitos

Não há somente uma forma de tratar o TDAH, conforme explica Antonio Alvim, psiquiatra do ambulatório de TDAH da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Em geral, para um melhor resultado, são utilizados medicação (com uma substância que recebe o nome de meldifenidato) e acompanhamento psicológico. Além disso, quem tem TDAH pode desenvolver hábitos que contribuam para lidar melhor com as tarefas do cotidiano.

“Mesmo com os efeitos benéficos da medicação, os pacientes necessitam receber outras intervenções psicoterapêuticas, para maior conscientização sobre suas dificuldades, aprendizagem de estratégias comportamentais, incentivo a novas rotinas, sustentação da motivação e esforço em prol de seu tratamento,  compreensão  do impacto  familiar e social, maior  iniciativa  e capacidade de autorregulação”, pontua Walkíria Boschetti, neuropsicóloga do Hospital Israelita Albert Einstein.

Patricia Rodopiano, 42, já passou por muitas dificuldades até criar estratégias para vencê-las. Quando era gerente de uma grande rede de fast food, ela tinha que dar conta de fechar o caixa todos os dias, mas o resultado quase nunca era satisfatório. Esquecer de fazer alguns lançamentos era comum e as contas, no final, não davam certo, muitas vezes havendo uma sobra dos valores recebidos.

“Agora, criei o hábito de fazer anotações na hora em que as coisas acontecem. Também uso despertador e agenda eletrônica, para que eu possa me lembrar dos compromissos. Algumas coisas, simplesmente, deixei de me cobrar. Eu nunca vou ter, por exemplo, um par de meias combinando, pois sempre perco uma delas. Eu analiso o que é importante”, diz.

Ciente de que, durante o seu trabalho, Patricia pode ter alguns esquecimentos, ela também conseguiu achar formas de solucionar algum problema que pode ocorrer durante o processo, sem que comprometa o resultado final.

Criar uma rotina foi uma das opções que Camila Lataliza, 31, encontrou para lidar com os sintomas do TDAH, em especial com o esquecimento. Após um tempo em que fez algo, com a cabeça mais tranquila, ela revisa suas atividades.

“Tenho dificuldades, mas uma vida normal. E dificuldades todos nós temos, de uma forma ou de outra. Sou casada, mãe de duas filhas, fiz duas faculdades, trabalho fora, dirijo”, ressalta.

Se é muito importante que a pessoa que tem TDAH busque tratamento adequado, quem convive com elas também pode ajudá-las a vencer alguns desafios. “As pessoas que convivem com indivíduos que apresentem o TDAH necessitam receber orientações sobre as causas e o curso do quadro ao longo da vida, para que melhor compreendam os sintomas relacionados e seu impacto no dia a dia. Além disso, pode-se fornecer auxílios externos, como lembretes escritos, lista de tarefas e itens, ajudar o individuo a melhor administrar seu tempo e prioridades, reconhecer seus pontos fortes e favorecer sua autoestima”, enumera Walkíria.

Um terço das crianças mantém quadro no futuro

De acordo com uma pesquisa realizada pelo Hospital Infantil de Boston, que é filiado à Universidade Harvard, e, ainda, em parceria com a Clínica Mayo, os dois localizados nos Estados Unidos, cerca de 30% das crianças que têm déficit de atenção permanecem a apresentar os sintomas do transtorno também na fase adulta.

A pesquisa fez uma análise dos dados de 5.718 pessoas nascidas entre os anos de 1977 e 1982, em Rochester, Minnesota, e as acompanhou até os 27 anos de idade, em média. Dos jovens analisados, tendo como base o histórico médico e acadêmico dos indivíduos, os médicos concluíram que 367 tinham TDAH e, destes, 232 participaram de todas as etapas do estudo, sendo que 75% recebiam tratamento.

Das crianças analisadas que apresentaram os sintomas do transtorno na fase adulta, 81% apresentaram outro tipo de transtorno psiquiátrico. Os distúrbios mais prevalentes eram ansiedade, depressão, abuso e de pendência de substâncias tóxicas.

Ainda de acordo com o estudo, o TDAH pode aumentar a incidência de morte prematura, sendo que 1,9% dos participantes morreu antes dos 27 anos.

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