Após um leve titubeio, a pergunta: “E aquele seu problema?”. A jornalista Daniella Zupo sorri, internamente. Sim, ela entende a hesitação do interlocutor – embora não veja problemas em dizer, com todas as letras, a doença que enfrentou: o câncer. “Ainda há muito tabu”, reconhece a moça, que ano passado decidiu compartilhar etapas de seu tratamento disponibilizando, no YouTube, a websérie “Amanhã Hoje é Ontem”, que teve milhares de visualizações.
Agora, a empreitada desdobra-se em livro, com o mesmo nome – o lançamento, aliás, acontece neste sábado (23), a partir das 11h, na Livraria Quixote (rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi). O conteúdo, porém, é completamente distinto, à exceção de um capítulo que reproduz o primeiro episódio do conteúdo online. “O restante, é um apanhado de textos, em formatos diferentes. Tem um pouco de ensaio, crônica, contos, poesia... Mas todos a partir do mesmo fio condutor, que é meu olhar sobre essa experiência. Na verdade, o vejo como um diário de bordo”.
Dividir este tipo de vivência, como se propôs a jornalista, não é de todo incomum a quem passa por situações limítrofes. “Você acorda todo dia, vai ao trabalho, tem seu final de semana... E um belo dia, sua vida muda radicalmente”, diz Daniella.
Médica do Hospital da Baleia, também referência no tratamento de câncer, Raquel Vilela endossa a importância desses relatos. “O ser humano cresce a partir da sua experiência e da observação da vivência do outro. Quem vai ao Alcoólicos Anônimos (AA), por exemplo, irá assistir a uma troca de experiências. E, daí, elabora, a partir também de sua vivência, um motivo para parar de beber”, compara.
Não só. Ela entende que esse tipo de iniciativa abre horizontes a quem talvez “esteja completamente sem perspectiva”. “Um conforto, o vislumbrar de uma razão para seguir a luta. É como uma bússola. Daí, aliás, o sucesso de biografias ou autobiografias”.
Daniella avalia: “Acho que a força do livro é que ele até se descola um pouco do diagnóstico de câncer, porque, na verdade, o que está ali é uma grande auditoria existencial, que foi o que fiz durante todo esse período. São questões que, na verdade, são essenciais a todos que se interessam por essa jornada de aprofundamento espiritual, racional e emocional”.
Imbuída desse espírito de partilha, a jornalista – que encerrou o tratamento em novembro passado – criou o site amanhahojeeontem.com, que entende ser como um memorial, com conteúdo diversificado, de modo a facilitar o acesso de interessados.
Todas as letras
Combater o temor que cerca a menção da doença foi um dos motivos que levaram o jornalista Maurício Lara a lançar, em 2005, “Com Todas as Letras – O Estigma do Câncer Por Quem Enfrentou Esse Inimigo Cruel” (Record). “Escrever me ajudou no processamento da doença (no caso, um câncer de próstata) e acredito que tenha tido uma função importante, inclusive para quem enfrenta outros tipos de câncer, pois a sociedade ainda tem dificuldade em lidar com a doença, e com o doente”, entende.
A tal ponto que, diz ele, muitos seguem se referindo ao câncer como “aquela doença”. “Normalmente, têm dificuldades em abordar o assunto, só falam comigo quando se sentem autorizadas. Ficam tateando”, diz ele, que também ressalta a importância dessa vertente do mercado editorial. “O câncer continua sendo mais mortal do que poderia ser”, diz, referindo-se à importância do diagnóstico precoce, com o qual a informação pode contribuir.
Cris Miranda sabe bem do que Maurício está falando. Até seu filho ter confirmado o diagnóstico de leucemia, a jornalista teve que lidar com uma indicação de antibiótico e mesmo com a especulação de que as manchas roxas que apareceram no menino poderiam ser decorrentes de uma briga. Hoje com 12 anos, Caio acaba de concluir o período “mais pesado” do tratamento – está na chamada “manutenção”. Mais aliviada, Cris resolveu escrever um livro, “Mamãe Coragem”, com previsão de lançamento para novembro.
“Acabei conhecendo muitas mães que vêm do interior. Mulheres com três, quatro filhos, e têm que deixá-los para acompanhar o que está em tratamento. Via o sofrimento delas. Enquanto eu voltava para casa ao final das sessões (de quimioterapia), elas iam para as casas de apoio – todas boas, mas, enfim, não eram as suas casas. E não são poucas as que têm que deixar o emprego”, diz Cris.
O livro, que terá financiamento coletivo através do site Catarse, irá além das vivências de Caio. E caso arrecade mais do que o valor pensado para o livro, na campanha, ela pensa na compra e doação de poltronas novas à Santa Casa de Misericórdia, para dar mais conforto à espera das mães, posto que algumas sessões de químio ou mesmo os eventuais transplantes de sangue ou plaquetas demandam horas. Quem quiser colaborar para o lançamento do livro, é só acessar o site www.catarse.me/mamaecoragem
Desmistificando a relação com um acontecimento grave por meio da resiliência e da superação
A jornalista Daniela Zuppo conta que o livro “Amanhã Hoje É Ontem”, que lança neste sábado (23), segue a trilha da web-série que lançou no YouTube, que é a de falar da experiência do diagnóstico do câncer através de um olhar mais humanizado, que busca tirar alguma coisa para além até da vivência de superação. Ela lembra que esse potencial de transformação interior – que considera infinito –, vislumbra não só a partir de um diagnóstico de câncer, mas também de outros acontecimentos ditos graves.
O curioso é que os textos que compõem o livro precederam a web-série. “Eu poderia até dizer que a web-série nasce do livro, pois, quando recebi o diagnóstico der câncer de mama, fiz o que sabia fazer desde criança: escrever, que foi o que me levou ao jornalismo. Foi o jeito que encontrei de elaborar o processo”.
Daniella, na verdade, não pensava em publicar esses escritos – apenas se preocupou em organizá-los. Foi quando o editor Álvaro Gentil (Ramalhete) levantou a hipótese da publicação. “Para ser sincera, algumas pessoas já me provocavam (quanto a isso), talvez já tivessem detectado esse potencial”.
Mesmo assim, ela só resolveu encarar o desafio quando o hospital no qual fez o tratamento, a Oncomed, entrou na empreitada, ao entender que levar a informação inserida nos textos de Daniella a um número maior de pessoas poderia ajudar num ponto que todos os profissionais da saúde entendem como crucial: o diagnóstico precoce. E também no processo de transformação interior citado pela mineira.
Uma bússola para quem está se sentindo perdido
Embora os livros citados na página anterior tenham como denominador comum o registro de lutas contra o câncer, não são poucos os títulos no mercado que fazem referência a outros tipos de vivências que, ao serem compartilhadas, servem, como apontou a médica Raquel Vilela, de bússola a quem está passando por situações similares.
Há pouco mais de dois anos, a decoradora de interiores Odette Castro lançou “Rubi” (Ed. Impressões), no qual fala da síndrome Rubinstein Taybi – doença de origem ainda desconhecida, que pode gerar comprometimento mental, do andar e dificuldade para se alimentar –, com a qual Beatriz, 29, sua filha, foi diagnosticada. “Na verdade, não pensava em escrever um livro, pensava que seria muito criticada”. Mas aconteceu o contrário. “Comecei a receber muitos e-mails de pessoas narrando como tinham sido ajudadas”.
O curioso é que as mensagens não vinham só de mães de filhos especiais. “Mas também de pessoas em processo de luto... Ou mesmo pessoas ‘comuns”. Após ler a obra, uma mulher que vivia uma realidade similar à de Odette admitiu a ela que, no passado, havia chegado ao extremo de pedir a Deus que levasse seu filho: “Você me salvou”. Outra senhora, mãe de um menino que tinha sofrido um AVC, disse a Odette: “Todo mundo que está passando por algum sofrimento tinha que ler”. E, na sequência, foi de quarto em quarto, num hospital, mostrar a obra a pacientes.
Lançado ano passado, “Diário da Mãe de Alice” (Scrittore), da jornalista mineira Mariana Rosa, é um desdobramento do blog homônimo, no qual ela compartilha o dia a dia da fofa Alice, 4 anos, que, em razão da prematuridade, teve paralisia cerebral e desenvolveu a Síndrome de West, tipo de epilepsia de controle muito específico.
Passado quase um ano, Mariana conta que o livro segue “sua vida própria”. Este ano, para citar um exemplo, a obra a levou a uma roda de conversa em um presídio (o Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade, que acolhe apenas mulheres gestantes ou com filhos até um ano) em Vespasiano. “Elas (as presas) se identificaram com a história, pelos desafios, pelo fato de as coisas não terem saído como planejado... E também pelo desejo de registrarem as próprias histórias”, partilha.
Outro momento marcante foi uma outra roda de conversa, esta em um centro de saúde em Campinas. “Conversei com profissionais da saúde, pacientes, psicólogos etc. O tema era a despatologização da vida, e foi maravilhoso”, avalia Mariana, que também recebe muitos e-mails de gratidão.
A radialista e youtuber Selma Sueli teve o diagnóstico de autismo apenas aos 53 anos. Semana passada, quase um ano depois, lançou o livro “Minha Vida de Trás Pra Frente” (Ed. Manduruvá), narrando sua experiência antes e depois da diagnose. “Ao escrevê-lo, percebi que se esforçar para conseguir extrair o máximo de nossas habilidades, minimizando limitações, é um exercício válido para todos”.
Intercâmbio
Diagnosticado precocemente, o câncer infantil tem porcentagens de cura bastante elevadas nos dias atuais. Não por outro motivo, a médica Raquel Vilela se dispôs ela mesma a narrar a história de um de seus pacientes no livro infantojuvenil “O Sorriso de João”. Infelizmente, a batalha do sempre sorridente garoto contra um osteosarcoma não teve um final feliz, o que não deve ser encarado por pacientes e família que estão passando pelo problema como um desalento – no caso, a neoplasia, nele, foi detectada já em estágio bem avançado, com metástases importantes. “O livro tem como cerne, lição, a capacidade que o ser humano tem diante das adversidades da vida”. A chamada resiliência. “O João estava sempre com um sorriso iluminado. Era acolhedor e nunca reclamava, mesmo em situações extremamente dolorosas”. Detalhe: como o livro é dedicado a crianças, Raquel aborda todas essas questões de maneira sensível e com especial cuidado.
Do coração
De início, a história que a jornalista Luciana Neves Moreira rascunhou iria ficar restrita à caixa de lembranças da família. Num segundo momento, ela resolveu publicá-la em um livro “delicado, ilustrado”, mas, também, só para amigos e família. Foi num terceiro momento que veio a ideia de lançar “O Menino da Nuvem” no mercado. A obra infantil é dedicada a Marcelo, uma criança risonha e fofa que nasceu não do ventre, mas do coração de Luciana e de seu marido, Riva Moreira. Sim, nesta história, não há, em foco, uma condição genética, mutação ou neoplasia envolvidas, ou seja, uma dor. E sim a adoção. E a hora de informar a criança do processo.
Tudo começou quando Marcelo fez 2 anos, e Luciana achou que era o momento de contar como ele chegou à família. A decisão de alcançar mais pessoas veio com a ponderação de que a obra “poderia servir de base para que outras famílias possam contar a seus filhos como é nascer do coração”.
O retorno? “Tem sido maravilhoso. Muitos se emocionam, relatam que se veem na história”, diz, referindo-se aos “filhos do coração” que a procuram após a leitura. “O livro está envolvido em uma energia muito boa”, diz ela, que, neste domingo (24), às 15h, vai debater a obra na Bienal do Livro de Contagem, que acontece no Centro de Memória do Trabalhador.