“Sinto que qualquer assunto, fora o futebol, já nasce morto”. É assim que Nelson Rodrigues inicia a crônica “É Hoje a Batalha”, em que investiga como lances em campo representam e até transformam os humores dos brasileiros. Se atualizada para a Copa do Mundo em curso na Rússia, o trecho destacado já não se mostra verdadeiro. Afinal, jogadores e torcedores carregam mais que a camisa de suas equipes e um sentimento de patriotismo: comunicam questões de seu tempo – e de um tempo passado que, mesmo sem lugar, teima em permanecer.
Fato é que a Copa do Mundo de Futebol Masculino tem servido de pretexto para abordar temas como LGBTfobia, sexismo e racismo. Mesmo que timidamente, protestos acontecem no país sede, ainda que durem menos de um minuto, como a manifestação na praça do Manege, em Moscou, do ativista inglês Peter Tatchell, detido por erguer cartaz contra a conivência do governo de Putin à perseguição contra LGBTs na Chechênia. Nos estádios, os anfitriões lidam com demonstrações de afeto entre pessoas do mesmo sexo, como a flagrada na vitória da Inglaterra sobre a Tunísia. As iranianas, por sua vez, levam faixas exigindo que possam frequentar os jogos também em seu país de origem.
E se é tempo de torcer, pode ser também de dialogar. É nisso que acredita Fabíola de Araújo Cabral, técnica da equipe feminina de futsal da UFMG e do Bharbixas F.C, time LGBT nascido na capital mineira. “Um dos maiores problemas de nossa sociedade, o machismo, encontrava refúgio no futebol”, aponta ela, que não se surpreendeu com os casos de assédio, misoginia e LGBTfobia nesta Copa do Mundo (veja alguns abaixo). A profissional de educação física, no entanto, acredita que “estamos em um momento de virada”.
Um respaldo à fala dela pode ser detectado no tom de repreensão que o país adotou frente ao vídeo em que torcedores assediavam uma jovem russa, aproveitando-se de seu desconhecimento sobre o português. Junto à mídia tradicional, a internet se mobilizou para identificar os envolvidos, que tentaram justificar o ato dizendo tratar-se de uma “brincadeira”. Situação similar envolveu torcedores de outros países, como Argentina e Colômbia. A reação veio de forma incisiva – tanto que a seleção colombiana chegou a clamar para que os torcedores respeitem pessoas de outras nacionalidades. “Muitas vezes é preciso que situações assim apareçam para que possam ser discutidas”, acredita Fabíola.
O medo na Rússia
Antes mesmo de a bola rolar, muito se questionou sobre a escolha da Fifa em realizar o campeonato em um país envolvido em polêmicas, como legislação contra “propaganda de relações sexuais não tradicionais” e que, em 2013, aboliu as sanções previstas pela lei contra a violência doméstica. O racismo também está impregnado na imagem do país – o brasileiro Hulk, por exemplo, foi vítima de ataques em 2015, quando atuava pelo Zenit.
Evitando generalizações, Joana Ziller, pesquisadora do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da UFMG, lembra que a Rússia é uma nação continental e diversa. Há redutos mais progressistas, como São Petersburgo, e outros criticamente violentos, como a Chechênia – uma das repúblicas da Federação da Rússia, acusada de promover caça a LGBTs e manter campos de concentração contra minorias. Feitas as ressalvas, diferentemente de Fabíola, a pesquisadora não se mostra otimista que o evento provoque a discussão de questões do universo LGBT, das mulheres e dos negros por lá.
“O que estamos vendo é o acirramento”, diz, lembrando o espancamento de um casal homoafetivo francês no primeiro dia do Mundial, ameaça já iminente, pois “milícias russas haviam prometido caçar torcedores LGBTs e negros”, completa.
Joana recorda que em 2016, com a Olimpíada no Rio de Janeiro, o debate era pautado pela “saída do armário de atletas”. Passados dois anos, “volta a ser centrado no medo” em uma competição onde não há nenhum jogador assumidamente homossexual, lamenta ela, que, mesmo sendo fã do esporte, optou por não acompanhar os jogos desta vez “por causa do sexismo e homofobia”.
Integrante do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas da UFMG, Bárbara Mendes pondera que questões ligadas à violência contra minorias não se restringem à Rússia. “Quando o Brasil foi a sede, tivemos sérios problemas de assédio, por exemplo, que não combatemos”, critica, lembrando a frase lapidar de Jean-Paul Sartre (1905 – 1980): “O inferno são os outros”.
Como a doutoranda em psicologia observa, esperava-se sim que episódios de intolerância acontecessem. Mas não foram só os anfitriões a marcar gol contra: gritos homofóbicos da torcida mexicana resultaram em punição contra a equipe do país; houve episódios de assédio com torcedores de diversas nacionalidades que foram registrados em vídeos e postados em redes sociais; o apresentador britânico Alan Sugar, da BBC, comparou jogadores do Senegal a camelôs. Enfim, os inúmeros flagrantes de desmerecimento das minorias só provam o óbvio: o problema não está só no quintal (ou gramado) do vizinho.
“Há pouco tempo, tudo isso era legitimado no contexto do futebol”, pontua Bárbara. Agora, “há vários grupos que estão tentando conter essas violências, afinal, se deram conta que esse tipo de atitude atrapalha muito a dinâmica festiva que a Copa deveria trazer”.
Constrangimento alheio a rodo
Homofobia Em um vídeo que revoltou a web, o brasileiro Lucas Marcelo Andrade pede que meninos russos repitam frases como “eu dou para o Neymar”. Já um casal gay francês foi agredido em um táxi em São Petersburgo. E o Comitê Disciplinar da Fifa multou a federação mexicana graças aos gritos homofóbicos de sua torcida.
Sexismo Além do vídeo da jovem russa assediada, há um em que torcedores induzem nativas a falar expressões ofensivas. Por lá, a rede Burger King, acredite, ofereceu 40 mil euros e hambúrgueres para toda a vida às russas que engravidassem de um jogador. Depois, voltou atrás. E uma jornalista foi beijada à força em uma “live”.
Racismo O apresentador da BBC Alan Sugar comparou o time senegalês a vendedores ambulantes. Já uma deputada russa pediu às compatriotas que evitassem sexo com não-brancos, para “impedir a discriminação de crianças mestiças”.
Campanha
Ball for All Iniciativa inglesa, uma bola de futebol foi desenhada com as cores que representam a comunidade LGBT. A campanha incentiva que jogadores da elite do futebol tenham segurança em assumir sua sexualidade.
Venda “Símbolo de esperança e aceitação”, o produto está à venda pelo site ballforall.co – e é possível que a entrega seja feita no Brasil. Todo valor arrecadado será doado para causas LGBTs.
Torcida contra o machismo
Dizer que política e futebol se misturam é chover no molhado e exemplos não faltam. Na segunda edição da Copa, em 1934, cumpre lembrar, tal enlace já era marcante e a vitória italiana previu a ascensão do fascismo sob o comando de Mussolini. Já em 1990, após a reunificação da Alemanha, os cidadãos puderam dividir o sentimento de ver o país campeão. Há mais episódios que corroboram tal constatação, que é especialmente importante para agrupamentos de torcidas mineiras progressistas, como a Resistência Azul Popular (Rap), do Cruzeiro, e a Grupa, formada por torcedoras do Atlético.
Na luta para fazer do futebol um espaço menos machista, mais diverso e democrático, o coletivo feminista atleticano se surpreendeu ao se descobrir, do dia para a noite, cercado de aliados. “Não me surpreendi com a atitude dos torcedores que gravaram aquele vídeo abjeto (em que brasileiros levam uma torcedora russa a dizer palavras de baixo calão), sexista. É algo que nós, mulheres que frequentamos estádios, já vimos”, comenta Elen Campos, da Grupa. Ela lembra que algumas colegas chegam a usar roupas largas para evitar situações de assédio. “Mas fiquei surpresa com a reação das pessoas”, assegura. Pudera, até pouco tempo atrás o comportamento era aceitável. Prova? “Na Copa de 2014, assistimos a ofensas machistas dirigidas à ex-presidente Dilma Rousseff logo na abertura”, recorda.
A torcedora acredita que essa mudança venha sendo gestada de forma lenta e gradual. “Cada acontecimento é um passo importante na luta contra o machismo”, diz ela, voltando ao polêmico vídeo. “Mais que a comoção geral, houve uma tomada de atitude”, salienta, referindo-se ao desligamento de alguns dos envolvidos no escândalo por parte das empresas. Mas Elen garante que na Grupa não há clima de revanchismo. “Ninguém está comemorando o fato de estas pessoas estarem pagando pelos seus atos. O que sentimos é um certo alívio com o indicativo de que uma mudança pode acontecer, de fato, no futebol”, argumenta ela, que acredita que, após os acontecimentos, as mulheres vão se sentir mais fortalecidas a denunciar esse tipo de atitude.
A opinião é compartilhada por Cris Guimarães, da Rap. Para ela, é fundamental que as mulheres passem a ocupar mais espaço no futebol, a exemplo do trio de narradoras da Fox Sports – entre elas, a jovem mineira Isabelly Morais. A cruzeirense observa que o que acontece nas arquibancadas é reflexo de algo presente na sociedade, endossado por estatísticas como a do grande número de processos pendentes de feminicídio no país: 10.786, segundo o Conselho Nacional de Justiça.
Ao menos em campo se vê um progresso no que tange ao combate ao sexismo, analisa Cris. E sim, pode até ter quem torça o nariz, mas as mulheres têm conquistado espaço. Ela compara a situação com o racismo, hoje repreendido mundo afora, mas que já foi comum no esporte. Lembra, no entanto, que medidas mais enérgicas devem ser tomadas contra esse tipo de agressão no futebol.
Movimento ainda modesto é a aceitação dos LGBTs, avalia ela. “Até assuntos mais complexos, como a democratização e maior participação de torcedores nas decisões do clube, são mais aceitos”, pontua. A sua torcida, agora, mais que pela bola em campo, é para que a Copa na Rússia faça despertar esse debate também no Brasil. Afinal, “muito se tem falado sobre essa questão na Rússia, que já tem essa pecha de desrespeito aos Direitos Humanos, mas nós, brasileiros, somos o povo que mais mata LGBTs no mundo”, analisa ela, fazendo menção à pesquisa do Rede TransBrasil e do Grupo Gay da Bahia, que colocam o país no topo do ranking no que se reporta à violência acionada pelo ódio referente à sexualidade.
Do que depender da torcida britânica, o assunto vai ganhar audiência neste Mundial. Membros da Lions Pride, um agrupamento de torcedores LGBTs do país, têm comparecido aos jogos com bandeiras ostentando cores do arco-íris. Tampouco veem problemas em demonstrar afeto, indo contra a indicação das cartilhas distribuídas inclusive no Brasil, que recomendam que os LGBTs adotassem posturas discretas na terra de Vladimir Putin.
Apesar de uma política de Estado conservadora, jovens veem tímida abertura
Raízes do preconceito Compreender a tolerância dos russos a atos de LGBTfobia e violência contra a mulher não é tarefa fácil. Basta lembrar que, na esteira da Revolução de Outubro, ainda na década de 1920, o país foi o primeiro a descriminalizar a homossexualidade e o aborto. Mas, na década seguinte, com o estabelecimento de Josef Stalin e o isolamento internacional, a alta burocracia passou a revogar tais avanços. Em 1930, os homossexuais voltavam a serem perseguidos.
Vaivém Mais tarde, já na década de 80, com a União Soviética dando sinais de esgotamento e a população ansiosa por uma democracia efetiva, o então presidente Mikhail Gorbachev introduz a Perestroika. “Assim a gente vê a queda do primeiro Estado operário do mundo, ainda que degenerado, por meio de uma série de ações que acabam por restaurar não necessariamente a democracia, mas o capitalismo”, critica Paula Vaz de Almeida, doutora em literatura e cultura russa pela USP. Em 1993, a homossexualidade volta a ser descriminalizada, com a ascensão do neoliberalismo, e sua “exaltação do indivíduo e do consumo”. Ocorre que, do Estado Soviético degenerado, os russos passam a viver em um “sistema capitalista sanguinário”, como nomeia a pesquisadora, lembrando que desde a Perestroika houve aumento da fome e a expectativa de vida caiu em dez anos. Hoje, “a indiscutível potência militar tem uma população empobrecida, algo que cria instabilidades”. Então, para se manter no poder, tendo como principal aliado a Igreja, o atual presidente Vladimir Putin, há 18 ano poder, conjuga autoritarismo com o que há de mais reacionário no patriarcalismo, examina Paula. Nesse vaivém, os LGBTs sofrem com lei contra “propagandas de relações não tradicionais”, e as mulheres com a despenalização da violência doméstica. Todavia, a fama de ser um povo intolerante, prossegue ela, não é justa, pois não é característica intrínseca dos russos.
Resistência A ucraniana Marianna Petrovna Ekel, estudante de Relações Internacionais, conviveu por muitos anos com russos e endossa a análise de Paula. “Existem manifestações em defesa às minorias reprimidas e organizações não governamentais, por exemplo”, lembra ela, para quem a juventude russa tem questionado o conservadorismo, tendo, como aliados, a globalização e o intercâmbio cultural. Neste sentido, o Mundial pode trazer mudanças. “Pode ser que ajude a pensar: se em tantos países há aceitação, por que nossa política e nossa polícia são rigorosas quanto a isso?”, sugere.
Abertura O brasileiro Johnny Ferreira, que viveu no país entre 2014 e 2016, também destaca uma mudança de mentalidade. À época de sua estadia, ele chegou a namorar um russo, que conheceu por meio de um aplicativo voltado ao público gay. “Meus amigos de lá sabiam de minha sexualidade e nunca tive problemas. Só uma vez fui convidado por um colega para jantar com sua família e ele me alertou para que não falasse sobre o assunto com seus pais”.
Falta diálogo Fazendo questão de ressaltar que em cidades como Moscou e São Petersburgo há boates LGBTs, Marianna e Johnny acreditam que, algumas vezes, as questões são superdimensionadas, embora concordem: “Ainda há muito a ser feito”. Afinal, “questões de gênero e especialmente de orientação sexual são pouco debatidas lá e, de fato, não é um assunto frequentemente abordado em conversas casuais”, diz a moça. Além disso, ela indica que o país ainda é muito conservador, como apontou pesquisa da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais. Nela, 45% dos russos e ucranianos disseram que se sentiriam incomodados se tivessem vizinhos gays ou lésbicas. No caso brasileiro, a fatia de pessoas que responderam se incomodar foi de 15%.