Quando esteve em Portugal em julho, para ser homenageado na primeira edição internacional do Mimo Festival, Tom Zé não esperava que as declarações que deu à imprensa lusitana atravessassem o Atlântico e chegassem até nós. Na ocasião, ele acabou fazendo comentários sobre o turbulento cenário político brasileiro – coisa que evita por aqui – e revelando detalhes sobre o sucessor de “Vira Lata na Via Láctea” (2014), até então seu mais recente álbum.
Descobriu-se, então, que o título do trabalho seria “Canções Eróticas de Ninar”, e que versaria sobre o fato de, durante a infância e adolescência em Irará, no interior da Bahia, Tom Zé não ter recebido uma educação sexual formal. E é a bordo do repertório do disco – lançado em outubro, mês em que completou 80 anos – que o artista volta neste sábado (10) a BH.
Voltando à infância, ele lembra que foi o folclore a se encarregar de sanar dúvidas que a escola não dava conta de elucidar. “O pessoal da cozinha, do trabalho (naquele tempo, as casas tinham muitos empregados, eram enormes, e lá em casa era particularmente muito grande), tinha essa sensibilidade, uma espécie de responsabilidade social, que no CD é chamada de ‘urgência didática’, e é o subtítulo. O povo falava o tempo todo de sexo com figuras de linguagem, como se quisessem nos socorrer, para não chegarmos à idade adulta sem saber nada sobre o assunto”, rememora.
Embora tenha feito um show com o mesmo tema e quase o mesmo título (“Canções Eróticas para Ninar”) em 2014, ele observa que a situação agora é outra. “Esse show, feito há tempo, aludia ao tema, porém não tem nenhuma relação com o disco feito agora”, diz. “O assunto da sexualidade, que paira na cabeça de todos (alô, dr. Freud!), desde sempre é matéria para escritores, poetas, folcloristas, pintores... Como todos sabemos, tanto ‘Tristão e Isolda’, originário de histórias celtas e concebido por Gottfried por volta do ano 1.200, como o final do ‘Ulisses’, de Joyce, tratam vigorosamente das comoções da sexualidade humana. Desculpe, ao citá-los, quis ficar em boa companhia, mas há milhares de possíveis citações, se o papo a respeito começar. Quanto à minha práxis sertaneja, de brasileiro do interior, de músico, a tradução do tema deu-se por meio deste disco. Que, não por acaso, e sim por afinidade, é dançante.
“Sobe ni mim” foi o nome dado por ele ao ritmo que percorre todo o disco, que, aliás, tem uma das 13 canções batizadas com a expressão. Já a faixa “Descaração Familiar” é a que especificamente trata das as aulas de sexo ministradas fora da escola, com figuras de linguagem. “Dedo”, por sua vez, é inspirada no papo feminino sobre como driblar a proibição de fazer sexo antes de casar, enquanto “Orgasmo Terceirizado” é mais contemporânea – foi inspirada numa reportagem sobre massagens e terapias tântricas como alternativa à busca de algumas mulheres pela independência sexual. Embora algumas faixas já tenham aparecido parcialmente em outros trabalhos, a única já gravada na mesma versão do CD é “Por Baixo”, que está no repertório de “Estratosférica” (2015), de Gal Costa.
Todas elas foram cuidadosamente pensadas para não incorrer num erro comum quando a temática é sexo: a agressão à mulher. Para tanto, Tom Zé contou com a ajuda de Neusa Martins, sua esposa, que avalia as letras nesse aspecto, o que resultou num de seus trabalhos mais delicados.
Homem feminino
Tal sensibilidade é fruto de uma consciência adquirida aos 6 anos, quando descobriu “que era mulher”. Ao ouvir de um menino mais velho que as filhas da vizinha subiam nas árvores sem calcinha, foi tomado de uma raiva solidária, assim como do medo de que o tal menino percebesse que não pensava como ele e que por isso quisesse matá-lo. “Testemunhei o menosprezo profundo sofrido por meninas de minha cidade, a partir de seu gênero e da sexualidade. Esse menosprezo fez com que me identificasse com elas. Senti-me mulher, me filiei aos humilhados e ofendidos deste mundo”, lembra. “Ao trabalhar no disco, procurei não resvalar para a linguagem depreciativa que, ao falar de sexo, dirige esse aviltamento majoritariamente para a mulher. Deus nos livre!”.
Além das músicas do disco, o repertório do show estará aberto ao acaso. “Recebo pedidos frequentes, ‘Tom Zé, canta Augusta, Angélica e Consolação quando você vier aqui?’, ‘E ‘2001’, você vai cantar?’. Trago essas preferências para os que as querem, equilibrando memória e ineditismo”. Quanto a isso, inclusive, ele acrescenta que a apresentação é marcada pela presença forte de instrumentos experimentais. “O Berimblanck, o Hertzé se juntam às letras e ao assunto do ‘Canções Eróticas de Ninar’. Espero que o público de BH, absolutamente curioso e aberto, tenha afinidade com essa aventura”.
Acaso e experimentalismo, aliás, são presenças frequentes em suas performances. “Digo e repito, não sei fazer show engessado. Em dois dias, uma apresentação difere da outra. Neste show, a fantasia temática, o atrevimento – o que fazer sem ousadia? – e a alegria de pulsar com o universo estão bem presentes, sem nunca deixar de lado a brasilidade. A diversão da brasilidade”.
8 ou 80?
As oito décadas recém-completadas não o afastam do jeito menino de ser. Tom Zé se lembra que aos 5 anos chegou a calcular se chegaria ao fim do século. Mesmo com a conclusão de que teria 63 no ano 2000 (e ao perceber que os “exemplares” dessa idade em Irará não inspiravam muito vigor), ele concluiu que atingiria a meta. Hoje, quase duas décadas após o marco, se recusa a deixar de ser moleque e enxerga o tempo como algo misterioso. “Quando físicos falam dele, se aproximam perigosamente da poesia”, conclui.
Tom Zé
Sesc Palladium (r. Rio de Janeiro, 1.046, centro, 3270-8100). Neste sábado (10), às 21h. R$ 50 (plateia 1, inteira) R$ 40 (plateia 2, inteira), R$ 20 (plateia 3, inteira)
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