Pesquisa

Os recados que vêm do lixo

Trabalho de doutoranda da UFMG repassa 32 anos da história de Belo Horizonte por meio da investigação do que era descartado pelas pessoas

Por Jessica Almeida
Publicado em 13 de janeiro de 2019 | 03:00
 
 
 
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No início dos anos 1970, o arqueólogo norte-americano William L. Rathje (1945-2012), professor na Universidade do Arizona, assistia a um programa de TV, quando um personagem chamou sua atenção: um catador de latas da cidade de Kenwood, na Califórnia, falava com riqueza de detalhes sobre o estilo de vida dos moradores da vizinhança em que trabalhava – inclusive demonstrando preocupação com questões como desperdício e reciclagem. Sem necessariamente conhecê-los pessoalmente, o catador sabia sobre seus hábitos, o que consumiam, como se comportavam.

Dessa experiência, em 1973, nasceu a pesquisa que Rathje desenvolveria pelos 20 anos seguintes de sua vida: Garbage Project, ou Projeto do Lixo. Sua proposta era fazer arqueologia não a partir de fósseis, artefatos ou monumentos, mas de itens descartados no cotidiano. “A história de nossa civilização é contada a partir de potes e panelas quebradas. Tudo o que sabemos vem do que os antigos jogavam fora”, costumava dizer o professor, demonstrando que a arqueologia convencional e a do lixo são mais próximas do que possa parecer.

Paralelamente, em 1975, começava a operar em Belo Horizonte o primeiro aterro sanitário da cidade. Daquele momento até o ano de 2007, o terreno, localizado no KM 2 da BR–040, foi o destino de todo o lixo domiciliar e hospitalar da capital mineira. Em 32 anos de operação, recebeu 24 milhões de metros cúbicos de resíduos distribuídos por 60 hectares, e é sobre eles que se debruça hoje Vanuzia Gonçalves Amaral. Funcionária da Superintendência de Limpeza Urbana (SLU) de Belo Horizonte, ela deu início, em 2018, à sua pesquisa de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Arqueologia da UFMG tendo o aterro como objeto de estudo. Ao chegar ao fim do trabalho, terá em mãos um perfil detalhado do que era a cidade e das transformações pelas quais passou ao longo de todo esse tempo.

Primeira etapa. Dividindo a pesquisa em três frentes, correspondentes a cada década de operação do equipamento, ela acabou de finalizar a primeira, relacionada aos anos de 1975 a 1985. Assim, chegou a conclusões preliminares sobre como era a vida na capital naquele período, em termos de padrões de consumo, uso e descarte de objetos, que se traduzem em informações sobre características sociais, econômicas, políticas, culturais e até mesmo simbólicas da nossa sociedade.


“O lixo é uma chave importante de interpretação do comportamento humano. Isso é óbvio, tanto é que não é raro vermos em filmes, quando acontece um crime, que a primeira coisa que o perito faz ao chegar ao local é examinar o lixo”, observa Vanuzia. “Se você quer saber o que uma pessoa tem, o que ela faz, quais são seus padrões de leituras, hábitos alimentares, os remédios que ela toma, não é preciso perguntar. Basta olhar no lixo pra saber. Até porque muitas vezes é possível, inclusive, perguntar e concluir, a partir do lixo, que ela mentiu”.

Com base nas primeiras análises realizadas, Vanuzia percebeu uma surpreendente quantidade de plásticos nas amostras. “São muitos os tipos de plásticos, em diversidade, complexidade, dureza, densidade, cores, tudo já bastante variável e numa quantidade muito considerável”, observa. O vidro também é um material muito presente. “É outro item que aparece de modo significativo, mas é um tanto diferente do vidro que temos à disposição. São vidros grossos, densos, ao contrário do que vemos hoje, por exemplo, em garrafas long neck. Há também uma quantidade imensa de embalagens, cápsulas, seringas e frascos de medicamentos, demonstrando que a indústria farmacêutica já estava bem estabelecida”, acrescenta.

Paralelos. As constatações vão ao encontro da análise do professor do Departamento de Geografia da UFMG Célio Augusto da Cunha Horta sobre o período. “Nessa época, vivíamos o pós-milagre econômico, em que houve muito investimento de capital estrangeiro em Minas Gerais, assim como no restante do país. Belo Horizonte registra um crescimento demográfico e econômico muito grande, e isso provavelmente se refletiu nos hábitos de consumo da população, que passou a ter maior acesso a bens industrializados”, afirma.

Horta adianta que o perfil dos materiais encontrados deve mudar conforme a pesquisa avançar, porque em 1973 o mundo capitalista entrou numa crise, e isso, aos poucos, foi provocando uma desaceleração em nosso país, que culminou na chamada “década perdida” da América Latina, os anos 1980. “A dívida externa do Brasil com o FMI cresceu muito, e a população sentiu isso, um aumento do desemprego, uma atividade informal muito grande, o aparecimento dos chamados ‘camelôs’, que até então eram algo incomum. E pós-1985, já na era Sarney, há uma grande desindustrialização, que não é só relativa, mas também absoluta. Então, passam a entrar muitos produtos do Paraguai. Vanuzia provavelmente vai perceber, no material industrializado, diferenças relacionadas a isso”, antevê.

Nenhuma garrafa PET, embalagens longa vida ou fraldas descartáveis foram encontradas, mostrando que esses produtos não existiam ou ainda não estavam disponíveis para a maior parte da população na primeira década de operação do aterro. Além disso, apenas uma marca de leite, uma de margarina e poucas de óleo de cozinha aparecem. “Para se ter uma ideia, meu filho nasceu em 1991. Já havia fralda descartável, mas era muito caro, inacessível, por isso ainda usávamos as de pano. O leite vinha num saquinho. Suco e outras bebidas que hoje vêm em caixinhas longa vida não existiam, o que até nos deixa preocupados sobre a quantidade de conservantes que acabamos bebendo”, diz Horta.

Interesse é o cotidiano, não a excepcionalidade

Ainda que possibilite o confronto com achados curiosos – como o anúncio de jornal que procurava por “moça datilógrafa” que tivesse “boa aparência”, datado de 1978 e encontrado no aterro da BR–040 –, a maior potência da arqueologia do lixo se revela quando são identificados padrões. O professor William Rathje, por exemplo, em suas pesquisas no aterro Fresh Kills, em Nova York, concluiu que, ao menos àquela altura, fraldas e sacolas plásticas eram menos vilãs do meio ambiente do que se poderia supor.

As fraldas descartáveis representavam menos de 2% do lixo acumulado no aterro. Isso jogou por terra o mito de que fraldas de pano teriam menos impacto, afinal, seu processo de lavagem desperdiça muita água. As sacolas, por sua vez, também ocupavam um volume muito insignificante do espaço. “Se tivesse uma varinha mágica e fizesse desaparecer esses objetos da noite para o dia, os trabalhadores do aterro nem notariam”, disse o arqueólogo em 1992 ao “The New York Times”, referindo-se às fraldas e às sacolas plásticas. Papel, por outro lado, correspondia a mais de 40% do volume do aterro.

Descobertas como essas foram importantes para orientar a criação de campanhas de reciclagem, identificando problemas antes desconhecidos. É por esse caminho que Vanuzia Amaral espera seguir. “O que causa impacto – e o que interessa – no aterro é o que acontece todos os dias, atos que se repetem cotidianamente e sobre os quais não pensamos muito. É isso que vai revelar o que afeta o meio ambiente e vai ser necessário para transformarmos nossos hábitos, não as excepcionalidades”, ressalta.

Algumas transformações na mentalidade da população e até na legislação, relacionadas ao descarte do lixo e cuidado com o meio ambiente, já podem ser identificadas e devem se intensificar conforme a pesquisa avance. A criação do aterro e a consequente ampliação da coleta interferem num hábito então comum da população: queimar o lixo nos fundos de casa. “No começo do aterro isso é muito presente, materiais que foram queimados antes, coisas retorcidas. Aos poucos isso vai deixando de aparecer”, observa a arqueóloga.



Curiosidades da ‘lixologia’

Oficialização. Desde 1990, o termo “garbology” – junção das palavras “garbage” (lixo) e “archeology” (arqueologia) – consta no “Oxford English Dictionary” e, a partir daí, passou a ser incluído em outros dicionários.

Achados. Entre as relíquias encontradas pelo professor Rathje: cachorros-quentes de 40 anos perfeitamente preservados, o pé de alface ainda em boas condições após 25 anos e o guacamole, quase fresco, do ano de 1967.

Mudanças são lentas e lixo tem sobrevida após descarte

A historiadora e professora da Escola de Ciência da Informação da UFMG Ivana Parrela chama atenção para algo que ainda deve aparecer nas escavações de Vanuzia Amaral. “Um ganho importante dos anos 1990 é a criação da Asmare (Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável). A partir de iniciativas como essa passamos a nos preocupar com a reciclagem. O surgimento da Asmare e de outras associações ganhou mais força com eventos como a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, também conhecida como Eco-92. As pautas ecológicas ficaram mais prementes nos anos 1990”, comenta.

Vanuzia ressalta que, ainda que por vezes tenhamos a sensação de mudanças radicais no fluxo do tempo, o lixo indica que todas as transformações acontecem de maneira gradual. “O que percebemos ao analisarmos esses resíduos é que a vida segue um ritmo, e o que causa impacto nas nossas vidas é a soma de pequenos momentos. São pequenas coisas que, repetidas inúmeras vezes, geram um monte de lixo. E sobre esse ritmo, esse cotidiano, a gente muitas vezes se recusa a pensar”, afirma. “Em geral, a partir do momento em que descartam, as pessoas agem como se aquilo tivesse acabado. Mas aí começa outro ciclo, e talvez pior, que é quando vai afetar mais diretamente o meio ambiente, com geração de líquidos, gases, alteração da paisagem”, acrescenta.

Ivana expande a análise frisando a importância de levantamentos como esse para o nosso presente. “Pesquisas como a da Vanuzia Amaral são fundamentais para compreender como estamos vivendo, nos levando a pensar no impacto de escolhas como o consumo em excesso ou o desperdício de alimentos”, enumera. Célio Augusto da Cunha Horta, professor do Departamento de Geografia da UFMG, completa o raciocínio: “Ela (a pesquisa) pode não dar respostas para tudo, mas certamente vai dar uma série de ideias”.

Futuro do lixo

Alternativas. Entre os possíveis destinos para o material retirado do aterro da BR–040, Vanuzia Amaral estabeleceu três opções: aterrá-lo novamente, doar para uma cooperativa de reciclagem ou reuni-lo numa espécie de museu.

Consciência. “Pode não parecer muito interessante à primeira vista, afinal, não seria nenhuma relíquia sagrada exposta, mas, do ponto de vista da educação e do incentivo à mudança de comportamento, de padrões de consumo e descarte, poderia funcionar”, afirma Vanuzia.

Pesquisa é inédita no país

No Brasil, o engenheiro e arqueólogo André Wagner Oliani Andrade é pioneiro na arqueologia do lixo e autor de uma tese sobre o assunto para o Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP. Durante três anos, no início dos anos 2000, Andrade realizou um trabalho inspirado no Garbage Project no já desativado aterro de Volta Fria, em Mogi das Cruzes, região metropolitana de São Paulo. No entanto, um trabalho da proporção do realizado no aterro da BR–040, numa cidade do porte de BH, feito por Vanuzia Amaral, é inédito no país.

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