Mais inclusão

Sem barreiras

Blocos da capital prezam pela inclusão, abrindo espaço para pessoas com deficiência, idosos, LGBTs, entre outros grupos, e dão tom aberto e democrático para a festa

Por Patrícia Cassese
Publicado em 03 de fevereiro de 2018 | 04:00
 
 
 
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Integrante da bateria do bloco Todo Mundo Cabe no Mundo, o funcionário público aposentado Pompílio Guimarães, confessa: por vezes, se questiona se conseguirá, de fato, vencer a maratona de ensaios que precedem o desfile oficial. Não tanto pelo tempo, de duas horas, mas pelo esforço físico que seu instrumento – chocalhos de alumínio – demanda. Mas é um titubeio rápido. Logo, ele próprio se convence: “Não deixa de ser um exercício físico, né? Além disso, uma higiene mental”.

E lá se vai Pompílio, animado, disposto a dar o melhor de si para endossar o batuque que se espraia pela rua Piauí, na altura do número 647. Do alto de seus 80 anos (“muito bem vividos”), ele é prova inconteste que, no movimento de revitalização do Carnaval belo-horizontino, mesmo que os principais artífices tenham sido jovens, todo mundo é bem vindo. Aliás, como o nome do bloco ao qual pertence já deixa bem claro. “Não precisa explicar mais nada, já está ali, claro”, diz.

Criado há três anos, o Todo Mundo Cabe no Mundo prega, reivindica e brada pela inclusão. O bloco tem como uma espécie de medula a figura de Marcelo Xavier. Formado em Publicidade, mas conhecido na cidade pelo seu trabalho como escritor e artista plástico, Marcelo sempre foi um apaixonado pela folia, mas a criação do bloco transcende essa devoção para dar primazia à citada inclusão: aqui, não há espaço para preconceito. Como ele, outros blocos e iniciativas se coadunam com a proposta de promover uma festa democrática e acessível. Caso do Chama o Síndico, US Beethoven e Apae Folia, entre outros.

O Todo Mundo convida todo mundo mesmo, e, neste rol, nem dificuldades motoras são empecilho para levantar a bandeira do samba. O próprio Marcelo Xavier é exemplo dessa máxima. Convive com a esclerose lateral amiotrófica (ELA), e já há alguns anos ele se vale de uma cadeira de rodas para se locomover – aliás, dedicou a ela o livro “A Estranha”. Mas é bom frisar que, nos ensaios, ele estava em pé de igualdade, no quesito animação, com gente como Lúcia Helena Meira, 58, também cadeirante, por conta de uma esclerose múltipla. Ela descobriu o Todo Mundo Cabe no Mundo por acaso. “Sempre tive admiração pelo Marcelo Xavier e resolvi ir ao lançamento de ‘A Estranha’. Lá, soube do bloco e resolvi participar justamente pela causa”, diz.

Causa essa que vai ao encontro de uma ideia que ela defende. “Luto para que as pessoas com deficiência saiam de casa e ocupem espaços, pois só assim a sociedade vai processar a inclusão. Se as pessoas forem para a rua, essa invisibilidade tende a acabar. Porque vejo que muitas vezes as pessoas trombam nas cadeiras de roda, chutam as bengalas, mas não por maldade. São situações com as quais elas ainda não sabem lidar”, diz Lúcia, acrescentando que se sua participação no bloco incentivar um cadeirante que seja a sair mais de casa, já se dará por satisfeita.

Mãe de Beatriz, que tem síndrome de Rubinstein-Taybi, Odette Castro foi outra a aderir ao Todo Mundo. “Marcelo Xavier tem um codinome: inclusão. Ele afirmou que todo mundo cabe no mundo e nós, em bloco, acreditamos no que o Marcelo diz, então, todo domingo de Carnaval (referindo-se ao desfile oficial, dia 11, a partir das 9h, na Piauí, 647), essa frase se materializa num abraço, num passo de dança, num suor, numa lágrima, porque ali, no meio da rua Piauí, cabe todo mundo no mundo. E vamos fazer com que a cada ano todo mundo caiba mais e mais no mesmo mundo”, diz ela.

Pela diversidade

Pelo amor a seus filhos, outras mães também adentram a folia. Embora não se caracterize propriamente como um bloco, e sim como coletivo, o Mães Pela Diversidade MG (vinculado ao Nacional, e que aqui abarca cerca de 50 integrantes) também aproveitará o tríduo momesco para passar o seu recado em prol da tolerância.

A pedagoga Vera Leroy, uma das integrantes, explica: “Temos como objetivo defender nossos filhos LGBTs da violência, da intolerância e do preconceito. Nosso lema é: tire o seu preconceito do caminho, queremos passar com o nosso amor. Resolvemos dar um recado no Carnaval, em ritmo de Carnaval, justamente por causa da violência”. O desfile do será no domingo (11), às 9h, na av. Augusto de Lima, com r. Barbacena.

Pais e filhos também compartilham a paixão pelo Carnaval no bloco Apae Folia, cujo desfile será neste sábado (3), pelas ruas do Santa Tereza, tendo como tema os 120 anos de BH, celebrados em dezembro. A concentração será em frente à sede da Apae BH, na rua Cristal, 78, às 14h.

Aqui, o 'abre alas' é para todos

Foi aos 26 anos que Ludwig Van Beethoven (1770-1827) recebeu o diagnóstico do problema auditivo que mais tarde o deixou surdo. O compositor austríaco é uma das inspirações do bloco US Beethoven, outro dos que promovem a inclusão – foi o primeiro da cidade a disponibilizar banheiro químico para deficiente. Verdade seja dita, a homenagem também embute uma graça ao fazer menção à ala de surdos (no caso, o instrumento). 

Regente, Jonathan Melo conta que, no primeiro ano, o US Beethoven fez uma apresentação “parada” (não em cortejo) justamente pensando no conforto dos componentes da terceira idade. Este ano, no entanto, haverá sim, um percurso – o bloco sai neste sábado (3), das 8 às 12h, na esquina das avenidas Assis Chateaubriand e Francisco Sales, na Floresta.

O Chama o Síndico, por sua vez, abriu alas para o Sindicato Inclusivo. “A ideia surgiu pela experiência de integrantes com a utilização da arte como recurso de acesso à cultura, inclusão social, reabilitação, tratamentos e, em geral, da melhoria da qualidade de vida de d(eficientes)”, pontua Bruno Antônio da Cunha Lima, o “Titio”. “Essa inclusão permite colocar em prática todo um discurso de respeito à diversidade, às diferenças e aos direitos destes cidadãos”, prossegue ele, lembrando que o projeto conta com uma equipe multidisciplinar, “de profissionais capacitados e com experiência na área”.

O Sindicato Inclusivo foi idealizado por Bruno, que é músico, musicoterapeuta e psicólogo (e integrante do grupo desde a fundação). “E se desenvolveu a partir de oficinais de percussão, dança e teatro, na Superar, instituição que atende a d(eficientes) em BH e nossa parceira. O resultado será a abertura do Chama o Síndico, no dia 7 (na Afonso Pena, próximo ao Palácio das Artes, com concentração a partir das 19h), com toda a bateria, a banda, alegorias e a ala de dança”, promete ele.

Tem mais. O projeto conta com o apoio do Tambor de Neves, grupo de percussão da Apae de Ribeirão das Neves, dirigido pelo músico e historiador PG Rocha e acompanhado por Bruno. “O resultado vem trazendo muita alegria, pela adesão dos participantes, dos pais e pelo próprio envolvimento do bloco, que abraçou o projeto. Fica agora a expectativa do desfile, que promete ser lindo e emocionante”. 

Apae Folia

O Apae Folia realiza esse ano seu 12º desfile. Segundo Sanderleia Rodrigues, gerente do Centro Dia da instituição, tudo começou quando, nos bailes promovidos pela Apae, viu-se a habilidade dos atendidos (pessoas com deficiência intelectual) junto aos instrumentos de percussão. “Ante esse potencial, veio o bloco, com comissão de frente, alas, bateria... E a cada ano, um tema, que vamos trabalhando com os usuários. Por isso, é um processo também de aprendizagem. No primeiro ano, a adesão já foi muito boa, inclusive da comunidade. Hoje, faz parte do calendário oficial de BH e atrai cada vez mais pessoas, sejam de outras instituições que atendem a deficientes, batuqueiros de outros grupos, escolas de samba outras...”.

A cada ano, uma felicidade maior. É assim que Claudia Prates, coordenadora do Núcleo de Vida Independente (Nuvi) define o sentimento do grupo de meninos com Síndrome de Down, autismo e dificuldades motoras diante dos ensaios e do desfile do Todo Mundo Cabe no Mundo. “Por eles, teria ensaio o ano inteiro”, diz, lembrando que o fato de terem endossado o bloco deve-se muito ao trabalho desenvolvido por Marcelo Xavier – há anos o artista ministra concorridas oficinas de massinhas para crianças, adolescentes e jovens com deficiência. “Estamos aqui em função de o Marcelo ser quem é, pela sua sensibilidade e seu perfil de acolher diferenças”. 

Claudia lembra que alguns pais, animados, se juntam aos meninos – mas há os que preferem que os genitores fiquem em casa, para terem mais liberdade. Filha de Marcelo, a terapeuta ocupacional Cecília Xavier confirma o interesse crescente dos foliões, dos mais variados perfis. “No primeiro ensaio, éramos cinco”, diverte-se. “Esse ano, só no Facebook já há 2.500 interessados. A mídia vem cobrindo bastante, e o interessante é que trata-se de uma mídia espontânea, nem temos assessoria”.

Marcelo emenda: “É um bloco absolutamente aberto à diversidade – e haja diversidade no mundo. A gente queria ter representada toda a diversidade possível, pois essa é a grande beleza”. Recentemente, o bloco recebeu o prêmio Gentileza Urbana (do Instituto dos Arquitetos do Brasil, IAB/MG). “Mais uma alegria e um reconhecimento à nossa luta contra o preconceito, esse veneno da sociedade. Uma luta real, mas na qual podemos usar as armas suaves da arte, da cultura, da criação, da paz e do amor – e da liberdade, evidentemente”, conclui ele.

A inclusão como bandeira

Ao se debruçar sobre o Carnaval belo-horizontino, inicialmente como observadora e, num segundo momento, com foco na vida acadêmica (é professora de gestão de mídias sociais) e na consultoria que presta em marketing digital, Cláudia Ligório detectou comportamentos que refletiam, num espectro mais amplo, atitudes inerentes à Geração Y (e à Z), como o estar sempre atento às minorias e a questões ambientais, assim como a descrença em relação à política e às empresas gigantes.

“No Carnaval de BH, notava o reflexo do que essa geração prega como valor, como a valorização do espaço urbano. Então, não era um comportamento apenas local, embora cada país, claro, tenha suas peculiaridades. O europeu, por exemplo, já usa muito o espaço urbano, enquanto aqui ainda é algo que a gente precisa chorar por ele, brigar por ele”.

Com isso, ela desenvolveu projetos embasados na netnografia (ramo da etnografia que analisa o comportamento de indivíduos e grupos sociais na internet), que radiografava, por exemplo, os conflitos entre os realizadores, grupos interessados em patrocinar o evento e o poder público que circulam nas redes sociais. 

“Os jovens, aqui, querem um Carnaval inclusivo não só sob a ótica de quem tem uma deficiência, mas do pobre, da prostituta, do homossexual, da mulher reprimida. São valores que têm a ver com essa geração atual e que não eram enxergados. Querem ocupar lugares esquecidos da cidade”, observa. 

 

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