O diagnóstico de Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) pode, num primeiro momento, causar estranhamento, tanto para quem o recebe quanto para seus familiares. Mas esse não foi, definitivamente o caso da jornalista e relações públicas Selma Sueli Silva. Ao receber a confirmação da Síndrome de Asperger, no ano passado, aos 52 anos de idade, ela já estava mais do que enfronhada no assunto – a ponto de participar de palestras. Explica-se: há nove anos, seu único filho, Victor Mendonça, recebeu a mesma identificação do médico. Dado o esclarecimento após tantos anos de dúvidas e inquietações, a família (pai incluso) se debruçou sobre o assunto – e saiu mais fortalecida, disposta a seguir adiante sem ilusões, mas com muito mais confiança.
Neste final de semana, Selma e Victor, 20, estão em Montes Claros para mais um compromisso que vem se tornando rotina na vida dois: vão ministrar uma palestra. Só que a data, desta vez, traz todo um significado especial em seu bojo: é que o dia 2 de abril é o Dia Mundial de Conscientização do Autismo. O marco foi criado pelas Organizações das Nações Unidas (ONU) em 2007 e tem como referência a cor azul, com a qual monumentos e prédios são iluminados de forma a chamar a atenção da população para uma questão que atinge estimadas 70 milhões de pessoas em todo o mundo – no Brasil, 2 milhões. E cujo diagnóstico precoce é importantíssimo para que o autista tenha o acompanhamento e a estimulação necessários para driblar eventuais obstáculos em seu caminho.
Sim, embora a palavra “inclusão” seja cada vez mais inserida na sociedade, os autistas ainda sofrem estranhamento e mesmo certo preconceito. Estudante de gastronomia, a jovem Gabriela Martins Subutzki, 28, fala com propriedade do que é sofrer bullying. A ponto de, por um período de sua vida, ter optado pela educação à distância, para não ter que conviver com a crueldade advinda de alguns colegas da escola particular que frequentava. Não raro, a menina chegava em casa aos prantos, a ponto de não conseguir explicar o motivo do choro. “É impressionante como as pessoas podem ser cruéis. E quando mais viam que me atingia, mais riam e se divertiam. Chegava em casa arrasada”, rememora ela.
A história de vida de Gabi teve uma baliza importante quando a jovem passou um ano e quatro meses na cidade de Lee, em Massachusetts, frequentando uma escola direcionada a dar o suporte necessário para que jovens (autistas ou portadores de outras síndromes e transtornos) alcancem o maior nível de independência possível.
Hoje, Gabi voltou a frequentar uma sala de aula presencial. Não que tenha sido tarefa das mais fáceis. Terapeuta ocupacional e psicopedagoga, Alexandra Rangel, que acompanha Gabi, lembra que, ao saber que havia passado no vestibular, a jovem teve uma crise de choro – e não foi de alegria. Gabriela, na verdade, temia ser, mais uma vez, vítima de bullying. “Com eles, tudo é uma caminhada. Fomos trabalhando juntas, lembrando que até o início das aulas haveria tempo para ela se preparar, e até desistir, se fosse o caso”. O que acabou não acontecendo (leia mais na página 4).
YouTube
Tal como Gabi, Victor Mendonça também é universitário. Atualmente, cursa o 5º período de jornalismo, seguindo, pois, os passos do pai e da mãe. Aliás, foi justamente o esclarecimento dos dois que propiciou que o garoto, que teve o diagnóstico de Asperger apenas aos 11 anos, não sofresse a defasagem dos estímulos que poderiam ter sido dados anos antes.
Empenhado em divulgar o TEA, para evitar sofrimentos desnecessários a seus portadores (ele próprio reconhece o comportamento agressivo de tempos passados, quando chegava a se bater), Victor criou, em 2015, o canal “Mundo Asperger”, no YouTube, que já tem aproximadamente 10 mil inscritos, e 300 mil visualizações. Não só. Escreveu os livros “Outro Olhar – Reflexões de Um Autista”, autobiográfico, e “Danielle, Asperger”, ficção, ambos pela editora Manduruvá. Para se ter uma ideia, a primeira edição de “Outro Olhar” esgotou-se em dois dias. Hoje, o livro já foi enviado até para países como EUA, Japão, Portugal e Escócia.
O Autismo
O que é O autismo é descrito como um transtorno de desenvolvimento que leva a severos comprometimentos de comunicação social e comportamentos restritivos e repetitivos que tipicamente se iniciam nos primeiros anos de vida.
Características Cada caso é único, portanto, um autista pode manifestar um comportamento X que não se aplica a outro. Alguns podem apresentar “manias”, posturas ou ato repetitivos, rituais e mesmo autoflagelação.
Congresso Em tempo: nos dias 17, 18 e 19 de abril, a UFMG recebe o congresso internacional “Autismo, Dança e Educação: Poéticas da Autoralidade”, que reunirá pesquisadores inclusive de outros países. Mais informações em congresso.autismodancaeducacao@gmail.com
"Tudo bem ser diferente”, diz o estudante (e “aspie”) Victor Mendonça
Bom humor. Zero lamentação. Essas são algumas das bandeiras que Selma Sueli empunha com total convicção. E que também contagiam o filho, Victor. “A gente tem uma química”, constata ela. E serenidade também. Ou, pelo menos, a busca por ela, já que ambos se converteram ao budismo.
Foi em setembro passado, após uma palestra ministrada por uma mulher autista, que Selma teve o insight de que também poderia ter o transtorno – que, até então, pensava ser, em seu núcleo familiar, “exclusivo” do filho. Mas sim, ela relutou em levar a dúvida a um médico. Muitas pessoas podem se perguntar como Selma não desconfiou antes. A resposta: em mulheres, às vezes, até a variação hormonal pode mascarar o diagnóstico de autismo, bem como os clichês imputados ao sexo feminino, e ainda vigentes.
Hoje, ela reconhece que muitas situações pelas quais passou poderiam ter sido evitadas – ou entendidas – com o diagnóstico correto. Exemplo: o autista – ou “aspie”, como é carinhosamente chamado – , em geral, sofre diante de uma “desconstrução” ou falha comunicacional. E Selma passou por situações que poderiam ter tido resultados danosos – de brigas no trânsito a ter entrado em uma região extremamente perigosa após ter sido roubada. A consciência do transtorno, pois, fornece todo um instrumental que ajuda a pessoa a se auto-policiar para não frear a crise. Tanto Selma quanto Victor, por exemplo, têm um mantra budista ao qual recorrem em situações limítrofes.
Agora, o momento é de se empenhar para combater estigmas, como o de que o autismo é uma deficiência. “Não, é uma característica”, frisa Selma, com a anuência de Victor, que, por sua vez, reconhece que o caminho não é dos mais fáceis. “O sofrimento do autista é real”.
De forma tal que o canal no YouTube visa fazer com que nenhuma família se sinta sozinha, e amenizar o já citado sofrimento. “Tudo bem ser diferente”, acrescenta Victor. Para Selma, o sucesso na web centra-se no bom humor, na chama da esperança mantida acesa e no foco científico constante. Vale frisar que Victor também tem uma coluna na web-rádio do Centro Universitário UNI–BH sobre o tema.
Aliás, sobre a escolha profissional do filho, Selma ressalta o fato de o jornalismo fazer parte da comunicação, “que é justamente o maior gargalo para um autista”. “A gente quis transformar o carma em missão”, prossegue Selma, que, antes de encerrar a entrevista, pontua. “Não dou conta de lamentação”, diz, com seu sorriso contagiante.
Conscientizar é preciso
Não é preciso muito esforço: bastam alguns minutos de contato para se render à alegria de Francisco. Ao receberem o diagnóstico de autismo do filho, então com 1 ano e 11 meses, o casal Maria Luisa e Jardel não ficou propriamente surpreso. “Eu percebia algo que não estava no curso esperado”, diz Maria Luísa Magalhães Nogueira, 41, psicóloga que, coincidentemente, já atuava na área de psicologia social, e militava na questão da inclusão. Uma neuropediatra deu o diagnóstico. “Porque (o diagnóstico) é clínico, e, ali mesmo, naquele momento, percebi, pela fala dita de uma forma tão sensível que me marcou, que ele seria feliz do jeito dele”, diz Malu, que hoje, com Chicão (como ela o chama) já contabilizando 5 anos, sabe exatamente o que esperar. E a “cura”, no caso, não é uma palavra que esteja no seu rol de expectativas. “Aliás, critico muito essa indústria da ‘cura’ do autismo, a gente se depara com coisas absurdas, promessas que colocam muitos pais numa expectativa vazia e que submetem crianças a tratamentos inadequados”.
Por outro lado, ela reconhece que há avanços, como o abandono paulatino da ligação de autismo a deficiência mental. “Hoje, sabe-se que a inteligência está preservada, não é visto mais como um destino negativo. Claro, não romantizo. Há momentos sofridos”, reconhece ela, lembrando também a questão da falta de empatia, ainda presente na sociedade. “Mesmo os que têm o chamado autismo leve, não quer dizer que não sofram muito. São alvos de bullying e muitas vezes sofrem justamente por tentarem se aproximar do mundo – e este não os acolher”.
Não-verbal
No outro ponto do espectro, lembra ela, existe o autismo não-verbal. “Mas, como eles são inteligentes, acabam apresentando soluções de comunicação”. O reforço da escola, claro, é mais do que necessário. “No Brasil, houve um avanço com a Lei da Inclusão e no contexto da saúde, mas ainda sofremos com a falta de preparo no sistema público. Muitas vezes, são profissionais não devidamente gabaritados e, por isso, usam as orientações de forma inadequada”. Ela lembra, ainda, que muitas escolas usam artifícios para recusar a matrícula de autista.
Na inocência de sua idade, Chicão vai a fonoaudiólogo (ainda não desenvolveu a fala), faz terapia ocupacional e acompanhamento pedagógico, entre outras atividades. Os pais acompanham tudo com lupa – e paciência e amor. “O autismo virou meu foco de estudo”, diz Malu, hoje envolvida em um projeto, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), visando a conscientização de famílias e profissionais. A ideia é justamente essa: conscientizar. Com a palavra, Gabi: “Às vezes, as pessoas nos perguntam: ‘ah, mas não tem cura? Veja, não queremos ser curados. Queremos ser aceitos como somos”, diz ela, que já trabalhou até em biblioteca e, no futuro, pretende se enveredar pela confeitaria.
O universo TEA ganha a mídia
Power Rangers, o Filme No longa, que está em cartaz na cidade, o ator RJ Cyler interpreta o Ranger Azul, que está no espectro autista – aliás, por isso ganhou essa coloração. O ator fez um mea-culpa sobre seu desconhecimento sobre o tema, mas lembrou que fez questão de estudar o assunto a fundo, “por saber que significa muito para muita gente”.
Vila Sésamo O programa norte-americano apresentou, há pouco, uma personagem autista: Julia, cujas peculiaridades serão mostradas paulatinamente ao público. A garotinha de 4 anos tem cabelos ruivos e olhos verdes. Na verdade, ela já havia sido introduzida em 2015, no especial “Enxergue as Maravilhas de Cada Criança”.
Marcos Mion Inspirado no filho Romeo, o apresentador lançou, ano passado, o livro infantil “A Escova de Dentes Azul” (ilustrações de Fabiana Shizue), que retrata um Natal da família. Enquanto seus outros filhos pediam brinquedos modernos, roupas e tênis, Romeo nada queria além de uma escova de dentes azul.
Nick Hornby O celebrado autor britânico tem um filho autista, Danny, e para ajudar a levantar fundos para a Tree House, escola especializada na educação de autistas, lançou, em 2002, a coletânea “Falando com o Anjo”, composta por 12 contos escritos por autores de língua inglesa contemporâneos, incluindo o ator Colin Firth.
‘É uma população que requer atenção’
O diagnóstico de Transtorno do Espectro do Autismo é feito de maneira ampla, por multiprofissionais, lembra Lucas Géo, psicólogo cognitivo comportamental. Mas, aos pais, ele recomenda a procura inicial por um psiquiatra infantil, lembrando que, em alguns casos, o diagnóstico pode ser feito com poucos meses de vida, “o que abre a chance de uma intervenção muito mais eficaz dos tratamentos”. Evitar contato visual, ter interesse maior em objetos que pessoas e não apontar com o dedinho podem ser características a serem analisadas.
A amplitude do espectro, prossegue Géo, atualmente é compreendida em leve, moderado e severo. “Uma observação importante é o diagnóstico de Asperger, que ainda é válido, mas está na categoria de TEA leve. Na verdade, esta categorização diagnóstica ainda precisa de muita evolução. Existe uma enorme variação dentro destas categorias, por isso inclusive é que se adota a nomenclatura TEA, para simplificar e direcionar os tratamentos”.
Equívocos
Entre os vários equívocos dos leigos em relação ao autismo, Lucas cita o que recai sobre os portadores do chamado “leve”. “O termo não significa pouco ou menor sofrimento, mas que os sintomas se manifestaram de forma menos intensa. Essa é uma população muito vulnerável, que requer um cuidado especial”, adverte.
Rótulos dados por colegas, professores e mesmo familiares ante o desconhecimento, acrescenta ele, podem deixar marcas – caso de “chato”, “mimado”, “egoísta”. “Na verdade, não vejo outro caminho além da consciência da população, só assim é possível criar mecanismos de tolerância e desenvolvimento”. Motivo pelo qual ele saúda a data deste domingo (2). “Cria uma visibilidade fundamental. Ajuda no reconhecimento social e na luta por melhores direitos e espaços, muitas vezes negligenciado pelas autoridades e instituições. É a data de muita gente esquecida dizer que existe”.