Criada em 2012, a Lei de Cotas das instituições de ensino federal (Lei 12.711/2012) precisa, por lei, passar por uma revisão neste ano (2022) pelo Congresso Nacional. A legislação, que estipulou a reserva de 50% das vagas de instituições federais de ensino para alunos de escola pública, com percentual reservado para negros (pretos e pardos), indígenas, pessoas com deficiência e pessoas com baixa renda, traz prevista em seu artigo 7° revisão a cada dez anos.
Como o texto não deixa claro a forma que essa revisão deverá ser feita, Projetos de Lei apresentados nas duas Casas legislativas cumprem essa lacuna.
O tema foi definido como prioridade pela Comissão de Educação da Câmara para 2022. A presidente do colegiado, deputada Professora Dorinha (DEM-TO), defende que a discussão seja concluída ainda no primeiro semestre, antes que os trabalhos legislativos sejam diretamente afetados pelas eleições
Apesar de haver resistências por uma ala do Congresso, Dorinha avalia que o tema reúne "mais consenso do que dissenso" entre os parlamentares. Ela defende a prorrogação da política de cotas, mas com alterações.
“A política de cotas precisa ser acompanhada de um conjunto mais amplo de medidas. Não adianta abrir vaga só pela questão racial e não dar um suporte de acompanhamento dentro do curso, principalmente os que exigem uma formação mais robusta”, disse.
Parlamentares de oposição ao governo de Jair Bolsonaro (PL) apresentaram diversos projetos que prevêem alguma forma a ampliação da política, seja ampliando o prazo para a revisão, ou a transformando em permanente.
Já alguns parlamentares ligados à base do presidente – que diversas vezes, em suas declarações, demonstrou pouca simpatia à política de cotas, sobretudo a racial – apresentaram matérias no sentido de exclusão e diminuição da política.
Entre deputados e senadores, o entendimento é que o assunto precisa ser discutido e votado pelas duas Casas até agosto.
Contexto atual. No entendimento de parlamentares favoráveis à política de cotas, a revisão da lei sob o governo Bolsonaro é um fator de preocupação, pois, para eles, isso poderia trazer retrocessos à política. Nesse sentido, a oposição trabalha em dois projetos de Lei , já avançados no processo de tramitação na Câmara, que propõem a prorrogação do prazo para a revisão.
O mais próximo de ser votado em plenário é o PL 3422/2021 que prevê a prorrogação para 50 anos do prazo para a revisão. De autoria dos deputados Valmir Assunção (PT-BA), Benedita da Silva (PT-RJ) e Carlos Zarattini (PT-SP), a matéria recebeu regime de urgência na véspera do recesso legislativo, com isso ela já pode ser colocada em votação no plenário pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP), sem passar por comissões.
“A pandemia escancarou que o Brasil é extremamente desigual, e essa desigualdade tem cor. A população preta, parda, pobre e indígena é a que mais sofre nesse país e cabe a nós legisladores garantir mecanismos que de alguma forma busque minimizar essa desigualdade”, pontuou o deputado Valmir Assunção.
O petista ponderou que propôs um prazo longo, mas que o debate está aberto, e pode ser que haja emendas apresentadas no sentido de diminuir esse tempo. Parlamentares de partidos de centro ponderam que para garantir um apoio mais amplo dentro da Casa, é possível que o tempo de prorrogação da lei seja reduzido de forma a diminuir resistências.
Para o deputado Bira do Pindaré (PSB-MA), autor do projeto de Lei 1788/21 que prevê a prorrogação para 2042 da revisão da Lei, o contexto não é favorável para uma discussão séria e profunda sobre uma possível revisão da Lei.
“Temos um governo que se coloca claramente em oposição de iniciativas como essas. Se depender do governo que está aí a lei de cotas seria revogada. O ministro da Educação já declarou ser contrário às cotas raciais defendendo apenas a permanência das cotas por renda”, disse o parlamentar. O PL atualmente, com um texto substitutivo que estipula o prazo para 2032, aguarda conclusão de parecer na Comissão de Educação da Câmara.
O parlamentar ainda destaca a falta de estudos concretos que deem segurança para uma revisão.
“Não temos avaliações oficiais a respeito oficiais a respeito da execução dessa política pública. Temos dados e estudos de diversos pesquisadores e Universidades que mostram os avanços trazidos pela política, mas avanços esses que ainda são insuficientes diante da imensa desigualdade que o país vive”, afirmou.
Permanente. Já a também petista, deputada Maria do Rosário, defende que a política de cotas seja colocada como permanente, sem prazo estipulado para a revisão. No entendimento da parlamentar, autora ao lado da deputada Benedita da Silva do PL 5384/2020, não há de se pensar em um prazo determinado para a vigência de uma política afirmativa em um país extremamente desigual.
“Eu participei do debate em 2012 e quando foi definido esses dez anos, nós sabíamos que mudanças estruturais não se realizariam em dez anos, mas a pressão contrária era grande. Mas, no meu ponto de vista, não podemos propor um prazo quando temos consciência de que o racismo estrutural lamentavelmente não tem um prazo estabelecido para acabar no Brasil. Seria uma forma de negar um direito que ao invés de ser negado deveria ser consolidado”, destacou a parlamentar. O texto da petista aguarda votação de parecer na Comissão de Direitos da Pessoa com Deficiência da Câmara.
Para a deputada Maria do Rosário, não há nenhum impedimento de que a Lei possa ser revista ao longo dos anos, mesmo que seja colocada como permanente. A parlamentar, inclusive, defende a ampliação dela.
No Senado, também há proposta que busca esse debate. De autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), o PL 4656/2020, estabelece condicionantes para a manutenção da lei.
Pela proposta, se o preenchimento das vagas por alunos de escola pública negros, indígenas, pessoas com deficiência e de baixa renda estiver abaixo do percentual de cada grupo no total da população, a cota é automaticamente renovada por mais dez anos. Se o preenchimento das vagas igualar ou superar esse percentual, a política é mantida por pelo menos mais cinco anos. O PL encontra-se parado no plenário do Senado Federal.
Questão racial é ponto de divergência
Assim como no início das discussões sobre cotas no Brasil, e quando a Lei foi criada, a menção sobre cotas raciais ainda é o ponto mais sensível neste debate. Nesse sentido, outros projetos apresentados no Congresso, sugerem retirada do teor racial da reserva de vagas, ou seja, não haveria cotas para alunos negros e indígenas que não se enquadrassem no critério de renda.
Um dos projetos é o PL 1531/2019, da deputada Professora Dayane Pimentel (PSL-BA), ao qual foi apensado o PL 5303/2019, do deputado Dr. Jaziel (PL-CE). O deputado afirma que a lei seria mais coerente se não houvesse distinção por raça.
“Não é porque a pessoa é negra que ela é de baixa renda. Essa correlação é falsa no Brasil. Além disso, privilegia uma raça em detrimento da outra, quando o problema não reside na raça da pessoa, mas no modelo educacional brasileiro e sua ausência de ênfase no ensino de base”, diz o parlamentar.
O deputado ainda chama atenção para o que ele classificou como tribunais raciais estimulados pela Lei de Cotas. “Em um país miscigenado como o nosso, quais seriam as características delimitadoras que identificam alguém com a raça negra?”, opina. A proposta do deputado Dr. Jaziel está na Comissão de direitos humanos desde março do ano passado.
Para o reitor da Universidade Zumbi dos Palmares e coordenador do “Movimento Cotas Sim” - iniciativa que reúne intelectuais, artistas e empresários defensores da política de cotas - no Brasil, José Vicente, o fator racial intensifica a exclusão.
“A exclusão é diferente entre pessoas brancas e negras. Para uma pessoa negra e pobre a exclusão que ela sente é dupla, por isso é preciso se pensar em políticas que busquem uma equiparação entre brancos e negros”, pontua o reitor que exerga uma evolução no debate ao longo desses dez anos.
“Muitas questões sobre o assunto já estão superadas em parte da opinião pública. Nós enxergamos que a Lei de Cotas conseguiu trazer esclarecimentos sobre a necessidade dela. Tanto é, que hoje vemos essa política sendo estendida até para o setor privado, com empresas cada vez mais adotando a política em seus processos seletivos. Outro ponto positivo, é que a política de cotas proporcionou um aperfeiçoamento técnico sobre a autodeclaração. Hoje é possível se fazer esse crivo de uma forma muito mais isenta e correta”, afirmou.
Estudos necessários
De acordo com o reitor José Vicente, o Movimento Cotas Sim, além de promover o debate e pressionar o parlamento para a manutenção da política, também elaborou um relatório técnico sobre os dez anos da Lei.
“No final desses dez anos o governo deveria fazer uma avaliação sobre o alcance da Lei no seu desenvolvimento. Como o governo não fez, nós tomamos a iniciativa de fazer. Com a volta do recesso legislativo vamos entregar o relatório para a frente parlamentar mista de Educação e preparar os próximos passos”, destacou
Nesse mesmo caminho, o PL 3422/21, do deputado Valmir Assunção, também prevê a criação de um comitê especial, formado por membros do ministério da Educação do movimento estudantil, do movimento negro e das universidade federais, para que comece a produzir estudos e avaliações técnicas sobre a política de cotas no brasil.
“Esse conselho dará mais transparência e democracia no processo e terá como uma de suas funções estimular e realizar avaliação permanente da aplicação da lei, elaborando relatórios a cada cinco anos, sugerindo medidas complementares a serem tomadas pelas universidades”. O deputado acredita que o Conselho vai ajudar a entender que políticas de reparação são necessárias para não retroceder em conquistas já estabelecidas.
O TEMPO agora está em Brasília. Acesse a capa especial da capital federal para acompanhar o noticiário dos Três Poderes.