Faroeste candango

Há 60 anos, pai de Collor matava colega a tiro dentro do Senado

O TEMPO em Brasília reconstituiu o assassinato dentro da mais importante casa legislativa do país a partir de depoimentos, reportagens e áudios da época

Por Renato Alves | Levy Guimarães
Publicado em 03 de dezembro de 2023 | 09:30
 
 
 
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O clima era tenso no Senado em 4 de dezembro de 1963. Tanto que o então presidente da Casa, o paulista Auro de Moura Andrade (PSD), pediu reforço na segurança, com guardas à paisana. Estranhos foram impedidos de entrar no plenário. Assessores tinham que passar por revista, assim como todos que acessavam as galerias, algo incomum naqueles tempos, em que não havia aparelhos de raios-x, nem detectores de metal nas sedes dos Três Poderes da República, na recém-inaugurada Brasília. 

Pouco antes do início da sessão, seguranças do Senado desarmaram Leopoldo Collor de Mello, de 22 anos, o filho mais velho do senador Arnon de Mello (PDC), de Alagoas. Leopoldo tentou entrar com um revólver na cintura. Mesmo com o flagrante, foi liberado para seguir adiante, desarmado. Sentou-se perto de um genro do também senador alagoano Silvestre Péricles de Góis Monteiro (PTB), inimigo de seu pai. Era essa rivalidade regional que causava apreensão no Senado. 

Era sabido que capangas de Arnon e Silvestre estavam no Congresso com a missão de proteger os patrões. E puxar o gatilho, se preciso. O senador Lino de Mattos ainda subiu à mesa da presidência da Casa e avisou Moura de Andrade que Silvestre Péricles lhe dissera que ia “encher de balas a boca do senador Arnon de Mello”, assim que ele começasse a falar. Antes de abrir os trabalhos, Moura de Andrade fez uma inédita e dramática advertência ao microfone da Mesa Diretora, naquela tarde de galerias lotadas. 

“O primeiro orador inscrito é o senador Arnon de Mello. Antes de dar a palavra a sua excelência, a presidência precisa declarar que manterá a ordem e o respeito indispensáveis no Senado, nos limites máximos de sua força. Se, porventura, entre a assistência, ou nos corredores desta Casa, alguém perturbar a ordem, será posto imediatamente em custódia. Se, desatendidas as advertências da Mesa, houver qualquer delito, será imediatamente aberto inquérito e promovida a responsabilidade, inclusive com a lavratura do auto de flagrante indispensável e entrega às autoridades competentes”, afirmou. 

Silvestre, um militar, ex-delegado e herdeiro de família com peso na política nacional, já havia mandado recado ao inimigo, por meio de outros senadores, que, se tecesse alguma palavra contra ele, seria morto ali mesmo, dentro do Senado. Repetia, em voz alta, na cafeteria da Casa, para que todos os funcionários e parlamentares presentes ouvissem,  que encheria “de balas a boca” de Arnon. Pouco antes do início da sessão, Silvestre passou pela área reservada aos jornalistas e anunciou: “Vocês querem espetáculo, e vão ter.”

Arnon se levantou da cadeira bruscamente e se dirigiu ao microfone no meio do plenário Senado, assim que o presidente da Casa passou a palavra a ele, pouco depois das 15h. Nervoso, com o rosto avermelhado, o pai de Fernando Collor logo de cara citou o inimigo: “Senhor Presidente, permita vossa excelência que eu faça o meu discurso olhando na direção do senhor senador Silvestre Péricles de Góis Monteiro, que ameaçou me matar, hoje, ao começar o meu discurso!”. De pé, Silvestre deu alguns passos, com dedo em riste e rebateu: “Crápula, canalha, ordinário, ladrão, cafajeste!”. 

Arnon sacou uma arma e disparou duas vezes. Silvestre se jogou no chão, fazendo com que muitos acreditassem que ele havia sido atingido. Atrás das cadeiras do plenário, puxou um revólver. Rastejando até a ponta de uma das fileiras de assentos, buscou o melhor ângulo para atingir o oponente, em meio à gritaria e correria que tomaram conta do Senado. 

Silvestre apertou o gatilho, mas não saiu nenhuma bala porque o senador paraibano João Agripino, que havia se jogado sobre o colega, conseguiu, com o dedo polegar direito, bloquear o mecanismo de disparo. “Não atirei, Agripino” e “Já larguei” foram as palavras pronunciadas em seguidas por Silvestre. 

Ao mesmo tempo, guardas do Senado entraram em luta corporal com Silvestre e Arnon, desarmando-os. Em meio à ação, houve um terceiro disparo da arma de Arnon. Dessa vez, a bala acertou o teto do plenário do Senado. Arnon alegou mais tarde que o tiro foi provocado pelo segurança que o abordou.

Ao microfone, o presidente da Casa gritou: “Basta!”. Mandou os seguranças retirarem os senadores armados do ambiente. Do fundo, alguém gritou: “Há um ferido, excelência!”. Era o senador José Kairala, do Acre. Estava caído, sangrava muito. Havia levado um dos tiros do Smith Wesson de cano longo e cabo de madrepérola de Arnon, um revólver calibre .38. 

Arnon e Silvestre foram inocentados do assassinato no Senado

Arnon de Mello e Silvestre Péricles foram presos em flagrante, por ordem do presidente da Casa, logo após os tiros disparados pelo pai de Collor de Mello. Arnon e Silvestre tornaram-se os primeiros senadores brasileiros presos no exército do mandato. 

“Silvestre deu uma gargalhada selvagem. Sua fisionomia se decompôs completamente. Olhou-me com olhos vermelhos, injetados de sangue, e disse: ‘Não me mande para o Quartel do Exército, pois de lá saio assim que chegue, e volto para matá-lo’”, contou Moura Andrade em seu livro de memórias. 

Silvestre Péricles saiu, acompanhado dos guardas do Legislativo, rindo e ameaçando: “Assim que voltar, mato Auro, antes de Arnon.” Silvestre ainda foi fotografado, no banco dianteiro de um carro oficial do Senado, com o vidro aberto e o braço direito para fora, gargalhando, pouco antes de seguir para a carceragem do Exército. 

Para permanecerem trancafiados, era necessário que a maioria dos senadores aprovasse a medida, como manda a legislação ainda hoje. Com 44 votos favoráveis e 4 contra, os parlamentares aprovaram a detenção dos dois colegas. O Ministério Público denunciou ambos à Justiça do Distrito Federal. Pediu a condenação de Arnon por homicídio e de Silvestre por tentativa de homicídio. 

Defesa de Silvestre alegou inocência porque ele não atirou

A defesa de Silvestre alegou que ele não havia cometido crime algum porque sequer disparou um tiro. Já os advogados de Arnon recorreram à tese da legítima defesa para livrar o cliente da punição. O promotor do caso pediu para os dois permanecerem presos à espera do julgamento. Nisso, ele foi atendido.

Silvestre Péricles foi enviado para o quartel da Aeronáutica em Brasília, onde ficou pouco mais de um mês. Em janeiro de 1964, seguiu para o Hospital do Exército no Rio de Janeiro, onde passou por cirurgia de hérnia. Antes de dar entrada na unidade de saúde, sem algema, de paletó e sorrindo, deu entrevista e falou da certeza de uma absolvição.

O senador ainda fez uma ressalva. Disse que se tivesse atirado de volta em Arnon o ato seria considerado legítima defesa. Afirmou que só não agiu assim porque soube controlar seu impulso e era um altruísta. “E olha que atiro bem e bala não tem juízo!”, ressaltou, bem humorado. 

Em 16 de abril do mesmo ano, Silvestre foi inocentado pelo juiz da 1ª Vara Criminal de Brasília, Djalmani Calafange Castelo Branco, que também era o presidente do Tribunal do Júri da capital. O magistrado concluiu que não havia qualquer prova de tentativa de homicídio por parte de Silvestre, e que o senador apenas reagiu instintivamente para se defender ao sacar um revólver. 

“A questão considerada na sua fria objetividade leva, prontamente, à conclusão de que todo o procedimento do acusado, após ver-se alvejado pelo seu agressor, foi determinado pelo natural instinto de defesa de quem se vê atacado. Recebendo os tiros que lhe foram desfechados a curta distância, o acusado não revidou a agressão, pondo-se, de pronto, em situação de proteção e de defesa, lançando mão da arma que trazia e mantendo justificável e necessária atitude de expectativa, diante da possibilidade próxima da continuação da agressão, através de novos disparos da arma do agressor. Sob o ponto de vista objetivo, não se pode ver na reação do acusado simples atitude de ataque, quando é certo que essa reação foi quase, paralela — imediatamente e a seguir à agressão a tiros que sofreu”, escreveu Castelo Branco.

Inocentado, Silvestre voltou ao Senado em 7 de junho, após uma licença médica. Ficaria no cargo até o fim do mandato, em 1967. 

Devido ao valor histórico, o processo número 967, de 1963, que tem 776 páginas e trata do crime no Senado, foi destinado à “guarda permanente” do Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Ele serviu para consulta da equipe de O TEMPO em Brasília.

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