Brasil

Site criado pelo Congresso mostra leis bizarras do Brasil republicano

Governo previa expulsão de imigrantes sob argumento de que eram ‘vagabundos’ e criava os eternos benefícios para políticos

Por Heitor Mazzoco
Publicado em 24 de outubro de 2021 | 08:00
 
 
 
normal

Um novo site criado pelo Congresso Nacional apresenta todas as leis do período republicano, que começou em 1889, e mostra como o Brasil evoluiu  –aos poucos– entre os séculos 19, 20 e 21. Isso porque leis editadas no século 20, por exemplo, discriminavam, perseguiam e criavam benefícios para poderosos.

normas.leg.br estreou no ar neste mês, segundo anúncio do Congresso Nacional, “para apresentar a evolução nas normas de forma simples, informativa e transparente”.

É por meio da transparência que chegamos a 8 de junho de 1938, quando uma lei editada à época dizia que qualquer imigrante “vagabundo” deveria ser expulso do país. Se o imigrante estivesse em condições de rua, chamado de “mendigo” na lei, também deveria voltar para seu país de origem.

O decreto-lei n. 479 de 1938 ainda diz, de forma genérica, que será expulso do Brasil o imigrante que “se converter em encargo para o poder público”.

Ainda em 1938, sob o governo de Getúlio Vargas, outra lei preconceituosa entrou em vigor. Nesta, o governo brasileiro proibia entrada de “aleijados ou mutilados, inválidos, cegos, surdos-mudos, indigentes, vagabundos, ciganos e congêneres”, e pessoas “que apresentem afecção nervosa ou mental de qualquer natureza. Verificada na forma do regulamento, alcoolistas ou toxicômanos”.

A fama de país receptivo para qualquer pessoa cai por terra. Em 1941 o governo restringia a imigração no país. No entanto, logo no artigo 1º, o texto diz que há exceção para “nacionais de Estados americanos e estrangeiros de outras nacionalidades, desde que provem possuir meios de subsistência”. Ou seja, entrariam no país pessoas que possuíssem dinheiro.

Privilégios sempre existiram no período republicano

Outro assunto que chama atenção no site criado pelo Congresso Nacional é o número de pensões concedidas. São mais de 600 registros. O primeiro benefício, inclusive, foi editado em 22 de outubro de 1891, há 130 anos. O beneficiário era Pedro de Alcântara, dom Pedro II. Deposto pelos republicanos, seus algozes concederam benefício ao ex-imperador do Brasil no valor de 120 mil réis.

Outra curiosidade é a lei número 2, de 1891, que criava “créditos suplementares às verbas de subsídios dos senadores e dos deputados – e secretarias do Senado e da Câmara dos Deputados”, no exercício daquele ano.

A lei dizia ainda que estava permitido abertura de créditos suplementares para “a compra de livros e mais despesas do expediente”.

Historiadora elogia criação de site

Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), Sandra Molina, diz que a criação do site auxiliará pesquisadores e estudantes. Ela cita, inclusive, que quando começou a realizar pesquisas na área, precisava deixar o Estado de São Paulo e ir até o Rio de Janeiro para ter acesso às leis.

“A criação do site representa a transparência da lei. Eles dão acesso para quem queira ler, se informar. Esse é um pressuposto importante e raríssimo no governo em que vivemos, que é a transparência. O princípio da transparência permite que ocorra uma maior confiança nas instituições. Este site é um sopro de vento agradável, porque garante a confiabilidade, prospecção para onde vão os impostos, como as políticas públicas são criadas. Quando comecei a pesquisar eu tinha que xerocar e copiar leis no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e trazer para o interior de São Paulo. A globalização e a tecnologia são incríveis, mas não garantiram, por culpa dos governos, a equidade. Então, a informação vai chegar para poucas pessoas que vão saber usar e transformar em conhecimento. Mas, infelizmente, para grande parte da população, não vai tomar conhecimento, porque hoje as pessoas não têm nem o que comer. Estão pensando em outros problemas”, cita a historiadora.  

Sobre as leis preconceituosas dos séculos passados, Sandra Molina explica que pior que a edição das leis eram os debates em torno dos imigrantes.

“Eu escrevi um livro há pouco tempo sobre o café. Se você entrar nos debates do parlamento brasileiro do século 19, vai tomar um susto, porque quando eles estão discutindo quais imigrantes vão trazer, eles atribuem características que são, nos dias de hoje, completamente absurdas. Que os asiáticos são mais obedientes, que os espanhóis são perigosos porque são muito políticos. Esse tipo de coisa não fazemos porque nós evoluímos, ou se espera que tenhamos evoluído. Entre grupos mais de extrema-direita continuam fazendo as mesmas coisas. Mas, enquanto sociedade, avançamos um pouco mais”, disse.  

Trabalhadores que vieram de outros países nos séculos passados eram os principais alvos de governos da época, principalmente quando buscavam melhorias trabalhistas, segundo a historiadora.

“Nós fomos penalizando, percebendo como sociedade que a língua é muito poderosa. A língua reflete aquilo que a Nação entende. Uma das bases para definir um povo é uma língua comum e uma cultura comum. Quem era o ‘vagabundo’ para eles nessa época? Era o trabalhador que ousava insurgir contra regras de direito. Tem lei que mandava embora imigrantes que fossem pegos em manifestações, greves. Um processo de repressão”, afirma.  

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!