Liliane Pelegrini
O homem que amava as mulheres
Admirador declarado da beleza e numa eterna busca pelo amor perfeito, Vinicius de Moraes imprimiu em sua obra a marca de suas paixões e de seus nove casamentos
Vinicius de Moraes foi poeta, diplomata, jornalista, fez letra, música, excursionou pelo mundo, colecionou amigos e parceiros. Múltiplo que era, havia outro título ao qual não poderia – e nem quis – se negar: o homem que amava as mulheres. Casou-se nove vezes, teve cinco filhos e pintou para o mundo a beleza da mulher brasileira em prosa, verso e melodia – “olha que coisa mais linda, mais cheia de graça... ” Há os que dizem do poeta mulherengo, que pulou de galho em galho – ou, mais especificamente, de casamento em casamento. A esses, Carlos Drummond de Andrade rebatia: “Vinicius é o único poeta brasileiro que ousou viver sob o signo da paixão. Quer dizer, da poesia em estado natural”.

Ele foi, sobretudo, um grande romântico. Teve a vida guiada pela paixão. Só interessava ao Vinicius viver se estivesse apaixonado – e isso não é sobre as mulheres que teve, mas sobre tudo na vida”, comenta José Castello, autor da primeira biografia do poeta, lançada em 1994, pela Companhia das Letras, sob o título apropriado de “Vinicius de Moraes – O Poeta da Paixão”.
Nos cinco anos que se embrenhou pela vida e pela obra de Vinicius, Castello entrevistou seis das nove esposas do poeta: Beatriz de Azevedo e Melo, a Tati, com quem foi casado por 11 anos a partir de 1938 e mãe de Susana e Pedro; Lila Bôscoli, a terceira, com quem o poeta se uniu em 1952 e teve mais duas filhas: Georgiana e Luciana; Maria Lúcia Proença, mulher de Vinicius por cinco anos, desde 1958; Nelita Rocha, a quinta, que fugiu para Paris com o poeta em 1963; Christina Gurjão, a sexta, que viveu um casamento rápido com o poeta em 1968, mas suficiente para dele nascer Maria, a filha caçula; e, por fim, Gilda Mattoso, a nona e última esposa, com quem Vinicius dividiu seus dias até morrer, em 9 de julho de 1980. “Só não conversei com Regina Pederneiras, a segunda, que já havia falecido, com a baiana Gessy Gesse, a sétima, que me atendeu, mas não quis dar depoimento, pois estava preparando o próprio livro (e que só deve ser lançado este mês, no rastro das homenagens pelos 100 anos do nascimento de Vinicius) e com a argentina Marta Santamaria, a oitava, que na época não dava entrevistas. Hoje sei que ela já fala sobre essa fase da vida dos dois”, conta José Castello.
Pode parecer pragmático e pouco sentimental numerar cada esposa em “ordem de aparição“” e, inclusive, na contramão do que elas significavam para Vinicius. Foram muitas, de fato, mas eram únicas, pontua o biógrafo. “Ele as colocava no local de musas. Precisava dessas mulheres para se alimentar como poeta, músico e, principalmente como homem. Da forma dele, Vinicius sempre foi sincero com essas mulheres e cumpriu a regra de não querer viver um relacionamento por fachada ou rotina”, avalia Castello. “Nos intervalos dos casamentos mais importantes, o Vinicius inclusive caiu em grande tristeza e melancolia. É difícil aceitar um Vinicius melancólico, dada sua imagem oficial de um homem tão sempre com fome de viver”, acrescenta o biógrafo.

ESCOVA DE DENTES E PORTINARI
As oito separações de Vinicius, comenta o escritor José Castello, parecem ter eclodido a partir do mesmo sentimento. “Ele se jogava de cabeça na relação que vivia, mas se já não havia paixão, para ele não interessava. Ao que se sabe, a decisão de separar, em todos os casos, partiu dele. Há até uma postura meio machista e autocentrada, porque ele encerrava as relações de acordo com a medida dele, não das mulheres. Algumas me disseram que Vinicius não considerou como elas estavam se sentindo, se ainda estavam apaixonadas”, conta Castello.

Ainda que unilateral, há de se observar que o poeta foi generoso em sua máxima do “que seja eterno enquanto dure”. “É besteira dizer que o Vinicius se cansava e ia embora. Em cada relação, ele colocava a mulher amada como uma deusa, uma musa, o sol da vida dele e tudo passava a girar entorno daquele amor. Ele idolatrava suas mulheres e seus amores refletiam na obra dele, no modo dele de pensar. Quando um casamento acabava, ele tinha consciência do quanto aquela companheira alargou a vida dele, o quanto o fez enxergar o mundo com os olhos mais abertos”, avalia o biógrafo.

Sobre as separações, além da bagagem emocional, Vinicius costumava dizer que só levava a escova de dentes e o retrato que Portinari havia pintado dele. “Ele gostava de alimentar esse mito. Claro, não devia ser exatamente assim, mas é uma imagem muito precisa do modo como ele se dedicava ao amor. O que ele viveu com aquela mulher, era daquela mulher. Ele legou isso a cada uma”, afirma Castello. “Todas com quem conversei guardavam feridas da separação, claro, mas sobretudo se orgulhavam por terem sido amadas por esse homem”, diz.
Liliane Pelegrini
O homem que amava as mulheres
Companheira até o fim

Quando Gilda Mattoso se casou com Vinicius, em 1978, ele costumava apresentá-la de uma maneira peculiar, com um humor até meio fúnebre. “Ele tinha mania de dizer aos amigos: ‘Você já conhece minha viúva?’ ”, lembra Gilda. “Eu não gostava nada disso. Ficava brava com ele. Mas é que ele tinha essa certeza de que viveríamos juntos até o fim”, continua ela, que, como o biógrafo José Castello opina, talvez tenha sido a que enfrentou as maiores barras junto ao poeta, que 39 anos mais velho, já estava naquele ponto da vida com a saúde debilitada pela diabete que o acompanhava havia alguns bons anos e pela isquemia que o acometeu em 1979, num voo voltando de uma turnê na Europa.

Ainda que tenham existido os espinhos, pelas fraquezas físicas que se apresentavam e que, Gilda lembra, tiravam o típico bom humor de Vinicius, a história dos dois parece um conto de fadas. “Primeiro me apaixonei pelo poeta. Em casa, minha mãe era uma pessoa que gostava muito de poesia, ela mesma era poetisa amadora. Gostava, sobretudo, de sonetos. E eu estudava em um colégio muito focado em literatura. Com tudo isso, já conhecia a obra dele e pensava que um homem que escrevia daquela maneira só poderia ser uma pessoa incrível. Quando o conheci, descobri que o homem era ainda melhor do que o mito”, conta Gilda.

Isso foi em 1972. “Me lembro perfeitamente do nosso primeiro encontro. Eu nasci e vivi em Niterói e ele foi se apresentar lá com o Tom, o Toquinho e a Miucha. Fui com meu livro com a obra completa dele debaixo do braço, um livro bonito, de capa de couro, queria pegar um autógrafo. Era fã, tiete mesmo. A Marília Medalha (cantora e compositora com quem Vinicius fez parcerias) também é de Niterói e eu conhecia o irmão mais moço dela e consegui entrar no camarim. Depois, ouvi rumores de que a turma toda ia jantar na casa dos pais da Marilia e do meu amigo. Falei para ele: não como, não bebo, só quero ir para ficar ouvindo o Vinicius. Nessa época, ainda não havia a ponte (Rio-Niterói) e eu ainda acabei contemplada com a missão de levar o Vinicius de carro até a estação das barcas, onde ele pegaria uma lancha para voltar para o Rio de Janeiro”, relembra ela. Aquela paixão ficou em suspenso até 1978, quando se casaram em Paris. “Ele tinha de fato essa busca do amor perfeito. E me dizia: ‘Eu queria ser como meus avós, que se casaram e viveram juntos 50 anos, mas sempre quero alguma coisa a mais, não posso me furtar a viver isso que sinto’. Vinicius era de uma entrega total e absoluta na relação. Lembro que fiquei me achando quando fomos para o Uruguai e, ao reencontrar um amigo, ele perguntou: ‘E então, quais são seus projetos agora?’ Ao que Vinicius respondeu: ‘Em primeiro lugar, fazer Gildinha feliz.’ E ele falava essas coisas com convicção, não estava jogando para a plateia”, conta Gilda.
A ideia do casamento não agradou de cara a mãe de Gilda. “Ela dizia que Vinicius era um destruidor de lares, apesar de adorá-lo como poeta. Mas também acabou sucumbindo e fazia até doces dietéticos para ele”, relembra Gilda que, àquela altura, tinha 26 anos e nenhuma experiência anterior de casamento. “Ele foi meu primeiro e único marido”, sentencia, acrescentando que Vinicius era sempre tão bem humorado e generoso, um homem fácil de se apaixonar – à exceção de quando adoecia. “Ele detestava ter que fazer dieta, detestava querer comer ou beber isso ou aquilo e não podia. Eu tentava controlá-lo. Fazia com que ele comesse a comida de dieta, mas depois assaltava a geladeira. Confesso que fazia vistas grossas às vezes, porque ele dizia que não queria viver com essas limitações. E argumentava tão bem... Às vezes, me arrependo de não ter deixado que ele comesse os papos de anjo que tanto amava”, comenta.

Apesar da fama de galanteador do marido, Gilda diz que não se abalava, mesmo com a pouca idade e experiência. “Não tinha ciúmes do passado dele. Me relacionei e me relaciono com algumas das ex dele, frequentávamos as casas. Nelita, por exemplo, é uma amiga até hoje. Acho que não tinha ciúmes porque sabia que ele estava por inteiro. Ele às vezes brincava: ‘Acho que vou arrumar mais duas esposas, estou quase formando um time de futebol!’. Mas nós sabíamos que ficaríamos juntos até o fim. Desde que nos reencontramos e nos casamos, não ficamos afastados sequer um dia”, recorda.
Liliane Pelegrini
O homem que amava as mulheres
Louvação permanente
O legado de Vinicius de Moraes não fica apenas por conta da obra musical e poética, mas também por esse modo profundo de se relacionar com as mulheres. “Acredito que ele é incandescente ao se propor a um mergulho nos relacionamentos”, comenta o também poeta e cronista Fabrício Carpinejar, que concorda ser um discípulo do “erotismo maroto” e da busca por compreender o ser feminino que Vinicius empreendeu. “Ele não quer a perfeição nem a posteridade do amor. Quer, sim, o presente do amor, que é totalmente imperfeito. Vinicius gosta da mulher, não da idealização dela”, acrescenta Carpinejar. Da mesma forma, o escritor Xico Sá faz reverências não só ao poeta, de quem é grande admirador, mas ao homem apaixonado. “Vinicius é uma referência muito importante, que extrapola até mesmo a poesia. A obra dele não é apenas os versos, a música, é o jeito de ele estar no mundo. É uma lição para o homem contemporâneo que tem medo de se envolver da mulher e de se envolver de fato, para o cara que eu costumo chamar de ‘homem de ossanha’, que diz ‘vou, não vai’. Ele é o homem que me fez ser também mais devoto às mulheres. Ele deveria ser o grande padroeiro dos homens, Se eu pudesse voltar no tempo e encontrá-lo, certamente agradeceria e aproveitaria para pedir uns conselhos para aprimorar o conhecimento sobre a mulher”, diz Xico.

Liliane Pelegrini
O homem que amava as mulheres
Trecho da entrevista com Vinicius de Moraes feita por Clarice Lispector, publicada na revista Manchete e republicada em seu livro: “Entrevistas” (Editora Rocco, 2007).

Vinicius, acho que vamos conversar sobre mulheres, poesia e música. Sobre mulheres porque corre a fama de que você é um grande amante. Sobre poesia porque você é um dos nossos grandes poetas. Sobre música porque você é o nosso menestrel. Vinicius, você amou realmente alguém na vida? Telefonei para uma das mulheres que você casou, e ela disse que você ama tudo, a tudo você se dá inteiro: a crianças, a mulheres, a amizades. Então me veio a ideia de que você ama o amor, e nele inclui as mulheres. Que eu amo o amor é verdade. Mas por esse amor eu compreendo a soma de todos os amores, ou seja, o amor de homem para mulher, de mulher para homem, o amor de mulher por mulher, o amor de homem para homem e o amor de ser humano pela comunidade de seus semelhantes. Eu amo esse amor, mas isso não quer dizer que eu não tenha amado as mulheres que tive. Tenho a impressão que, àquela que amei realmente, me dei todo.

Acredito, Vinicius. Acredito mesmo. Embora eu também acredite que quando um homem e uma mulher se encontram num amor verdadeiro, a união é sempre renovada, pouco importam as brigas e os desentendimentos: duas pessoas nunca são permanentemente iguais e isso pode criar no mesmo par novos amores.
É claro, mas eu ainda acho que o amor que constrói para a eternidade é o amor paixão, o mais precário, o mais perigoso, certamente o mais doloroso. Esse amor é o único que tem a dimensão do infinito.

Você já amou desse modo? Eu só tenho amado desse modo.

Mas você acaba um caso porque encontra outra mulher, ou porque se cansa da primeira?
Na minha vida tem sido como se uma mulher me depositasse nos braços de outra. Isso talvez porque esse amor-paixão pela sua própria intensidade não tem condições de sobreviver. Isso acho que está expresso com felicidade no dístico do meu soneto Fidelidade: “que não seja imortal posto que é chama / mas que seja infinito enquanto dure”.

Reflita um pouco e me diga qual é a coisa mais importante do mundo, Vinicius.
Para mim é a mulher, certamente.
Você poderia dizer quais as maiores emoções que já teve. Eu, por exemplo, tive tantas e tantas, boas e péssimas, que não ousaria falar delas.
Minhas maiores emoções foram ligadas ao amor. O nascimento de filhos, as primeiras posses e os últimos adeuses. Mesmo tendo duas experiências de quase morte – desastre de avião e de carro – mesmo essa experiência de quase morte nem de longe se aproximou dessas emoções de que te falei.