Saúde

Labirintos da memória: cérebro pode bloquear e eliminar informações indesejadas

É importante cuidar do funcionamento do órgão mais complexo do nosso organismo e condicioná-lo a ter maior capacidade de armazenamento e uma vida mais saudável


Publicado em 18 de julho de 2023 | 06:34
 
 
 
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No início de junho, o jornalista José Norberto Flesch, conhecido por antecipar informações sobre shows e turnês nacionais e internacionais que chegam ao Brasil, lançou uma pergunta curiosa em seu Twitter: “Vocês se lembram dos shows depois que ele acaba? Tenho escutado muitos relatos de pessoas que chegam em casa depois do show e têm poucas lembranças. Como funciona para vocês?”.

Imediatamente, vários seguidores reagiram ao questionamento do jornalista. “Eu esqueci tudo do show do Harry Styles. Minha psicóloga disse que é porque nosso cérebro associa aquela adrenalina como trauma, porque ela é muito forte, aí o cérebro acaba apagando. Muito louco isso”, comentou uma internauta. Em seguida, tuítes e mais tuítes repercutiram a indagação de Flesch.

O músico Dani Drummer também deu seu depoimento, mencionando o dia em que tocou em uma importante casa de shows de punk rock de São Paulo e as memórias daquele episódio marcante simplesmente desapareceram: “Isso é real. Quando ia fazer os shows mais importantes, três dias antes não dormia, acabava o show não lembrava de nada, ficava p***. Tocamos no Hangar 110 lotado junto com NX Zero e fiquei perguntando aos amigos da banda o que havia acontecido por dias (risos)”.   

Uma jovem de nome Thaís deu sua explicação para o tal sumiço das lembranças após os shows. “Foco total no celular tentando filmar tudo, aí não absorve direito o que tá rolando mesmo”, escreveu no perfil de Flesch. “Eu lembro ‘0’ de todos os shows que fui, eu só lembro de como eu me senti estando lá, mas eu não consigo descrever nenhum momento” e “as primeiras músicas eu lembro pouca coisa, então assisto aos vídeos pra ‘lembrar’” foram outros relatos que surgiram nos comentários da postagem.

Antes de tudo, é preciso dizer que entendemos por memória a forma como o cérebro adquire, acumula e armazena informações, uma das funções mais complexas do organismo humano. O cérebro guarda conhecimentos e dados de duas maneiras: a memória de procedimento, relacionada à aquisição de habilidades obtidas pela repetição, como as funções motoras, sensitivas e intelectuais; e a memória declarativa – também chamada explícita –, relacionada a fatos, como, por exemplo, a lembrança de determinado episódio vivido na infância.

Fica, então, uma pergunta: o cérebro é capaz de separar, bloquear ou eliminar – conscientemente ou não, involuntariamente ou não – as informações recebidas? O médico neurocirurgião e membro da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia, Felipe Mendes, diz que o cérebro trabalha de maneiras distintas dependendo da carga que recebe. “Um momento carregado de uma emoção muito grande e positiva, que causou em você uma impressão muito forte, é um fator positivo para a absorção da memória”, diz Mendes.

Se a carga é negativa, quando há uma situação traumática, como um assalto, um sequestro ou uma situação de quase morte, o cérebro tenta bloquear essa memória como forma de proteção para a pessoa não ficar remoendo essa experiência negativa. “Memórias agradáveis são mais fáceis de serem apreendidas pelo nosso cérebro, por isso você consegue decorar a letra de uma música, mas não o material de uma aula, por exemplo”, completa o especialista.

Sobre o post de José Norberto Flesch, Felipe Mendes também entra no debate. O neurocirurgião pondera que é preciso foco e atenção antes de memórias serem consolidadas no cérebro: “Uma possível explicação é que muitas pessoas vão aos shows e não se concentram muito na performance, na exibição em si. Se ficou conversando com amigos, paquerando ou distraído com alguma coisa e a música foi só pano de fundo, muito provavelmente você não vai se lembrar dos detalhes”.

Drogas, tecnologia e estresse

O consumo demasiado de drogas – tanto as depressoras, entre as quais podemos citar o álcool, a maconha e os medicamentos para dormir, quanto as estimulantes, como a cocaína, o LSD e as anfetaminas – também é fator que prejudica o bom desempenho do cérebro no que se refere à memória e à capacidade de conservação. Episódios de estresse, transtornos de humor, ansiedade e depressão também fazem com que o cérebro tenha menos interesse em reunir informações. O estresse crônico, inclusive, produz substâncias prejudiciais para a memória.

“As drogas depressoras vão acabar reduzindo a atividade cerebral global, mais especificamente relacionada ao processamento de dados. O consumo excessivo pode até levar à demência. Já as substâncias estimulantes podem até melhorar a performance num primeiro momento, mas o uso exagerado e indiscriminado irá reduzir a quantidade de neurotransmissores no cérebro, prejudicando também o armazenamento de dados”, sublinha Mendes.

Sobre os danos causados pelo uso inconsequente de celulares, telas e dispositivos tecnológicos, Felipe Mendes argumenta que um dos perigos das redes sociais é que interações e expectativas alimentadas por “likes” acabam gerando recompensas imediatas de prazer. Quanto mais tempo conectado, maior a exposição e menor o descanso cerebral.

No longo prazo – 30, 40 anos de desmedido contato com os smartphones –, porém, ainda não é possível cravar os impactos na saúde do cérebro: “Como é uma tecnologia recente na história da humanidade, não temos dados tão precisos se haverá um aumento na incidência declínio cognitivo, de dificuldade de memória e atenção, se não terá nenhum efeito ou se o efeito será até mesmo positivo. Não existem trabalhos, por questão de limitação do tempo, que consigam responder a essa pergunta”.

É preciso cuidar da ‘máquina’ 

Não raras vezes, pacientes chegam ao consultório de Mendes à procura de soluções fáceis – leia-se “medicamentos”, como vitaminas – para, como num passe de mágica, melhorar o funcionamento daquele que é o órgão mais complexo do nosso organismo. Apelar sempre para remédios sem buscar outras soluções “é uma atitude muito rasa e até triste”, diz o especialista.

Para o neurocirurgião, os transtornos do cérebro – demência, Parkinson, Alzheimer, depressão, enxaqueca e esclerose múltipla, entre outras condições – e suas prevenções devem ser abordadas com a mesma atenção que se dá a problemas do coração, diabetes e hipertensão arterial. “As pessoas se assustam quando descobrem que as medidas que previnem essas doenças são as mesmas que ajudam a manter a mente afiada e a melhorar a performance do cérebro. Todas essas doenças prejudicam o cérebro, levando a quadros de inflamação generalizada”, avalia Felipe Mendes.

É possível cuidar do funcionamento do cérebro, esse grande HD que processa todas as nossas informações, e condicioná-lo a ter uma vida mais saudável. Dormir, no mínimo, sete horas por noite, praticar atividade física regularmente, ter uma alimentação balanceada, que dispensa produtos processados, e estimular o cérebro, desafiando-o a trabalhar com algo ao qual não está acostumado, como aprender uma dança, um novo idioma ou pesquisar sobre uma área que não seja a da atuação profissional, são dicas valiosas.

“Outra coisa muito importante é: quanto maior sua conexão social e o número de vínculos de verdadeiras amizades, mais seu cérebro se mantém ativo. A solução não é tomar a substância ‘x’ ou ‘y’ ou fazer a dieta da moda”, observa o médico neurocirurgião.

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