O viaduto, uma mureta, um poste ou mesmo o teto. Qualquer mínimo espaço vira tela nas mãos embrutecidas de Zé D Nilson. O homem negro de 54 anos e semblante tímido parece ter um caminhão de vivências guardado no peito. E o sentimento do bairro Lagoinha, na região Noroeste de Belo Horizonte, cravado nas mãos.
De tanto mexer a massa com cimento, areia e argamassa, o pedreiro, que passou a desempenadeira em boa parte das casas e dos barracos da região, sentiu que poderia fazer outro tipo de reboco. Há cerca de cinco anos ele se divide entre os chapiscos das reformas e as texturas artísticas feitas em murais. Virou artista.
O homem parece um especialista em vencer dificuldades. Passou a infância errante entre idas e vindas por internatos na capital e no interior. A mãe foi empregada doméstica e morreu jovem. Mesmo diante de tantas agruras, consegue sorrir e confessar sua paixão por Belo Horizonte desde o primeiro momento em que bateu o olho na capital mineira, aos 14 anos. A resiliência é algo que transparece em suas obras, sempre com mensagens positivas, mas ele não esquece a desigualdade e vê a Lagoinha como uma região de muita dor e sofrimento.
“Parece um carma”, diz. Seu impulso é amenizar a pobreza e carência indisfarçáveis do local com mensagens que ele chama de “estampas”. “Eu levo a realidade do dia a dia que eu vejo, a gente sofre”, prossegue. Essa conexão imediata com o entorno se reflete até no nome do artista, que se chama Nilson no documento, mas se tornou Zé por ser uma alcunha comum entre os serventes de pedreiro.
Demorou, mas a realidade do pedreiro começou a mudar há pouco tempo. Ele diz que buscava “algo diferenciado” desde criança e comenta uma pintura que fez da mãe aos 5 anos. Mas a centelha artística veio quase 50 anos depois, com o pedido de socorro de uma pessoa transexual que Zé conhecia da época de internato. Eles não se viam havia quatro décadas. “Ela estava morando embaixo do viaduto e disse que tinha curso de cabeleireiro e cozinheiro, mas ninguém dava chance. Aquilo me tocou”, relembra. Foi a deixa para o pedreiro fazer sua estampa texturizada e dar o agrado de presente à amizade de infância.
Foi a primeira textura de várias. Atualmente, é fácil esbarrar com algum trabalho de Zé por vias e muros da Lagoinha. O bairro, que foi originalmente ocupado pelos operários que trabalhavam na construção de BH, é o bojo de inspiração do pedreiro que virou artista. “Eu vejo muito espaço vazio aqui no entorno”, diz.
Zé diz nunca ter sequer pisado em uma galeria de arte. “Ali entra outra classe, então você fica cabreiro. Antes de chegar, você já toma uma encosta”, explica. Também não conhece Inhotim, o museu de arte contemporânea que fica em Brumadinho, a menos de 60 km da casa de Zé. O sonho dele é um dia expor ali algum de seus trabalhos – mas acostumar-se à alcunha de “artista” ainda vai demorar. “Essa palavra me assusta. Na minha mente, artista é um cara diferenciado, tipo o Michael Jackson”, diz.
“As pessoas me viam estranho, diziam que eu ia pichar, mas, no decorrer do tempo, começaram a enxergar. Hoje em dia é só glória.”
Trabalho feito por Zé D Nilson é único no país, diz especialista
De forte apelo social, as obras de Zé D Nilson se destacam no cenário cinzento da região, congestionada por viadutos que se entrelaçam e uma cracolândia que o poder público não consegue solucionar. “Ele tem esse estilo näif, ou seja, algo bem genuíno, sem formação acadêmica, mas que é único e peculiar dele”, avalia Juliana Flores. Ela é uma das integrantes do Circuito de Arte Urbana (Cura), o evento que vem colorindo Belo Horizonte com arte urbana desenhada em empenas de prédios.
“Não tem outra pessoa no Brasil com estilo semelhante”, pontua Juliana. Na edição do Cura realizada na Lagoinha, em 2019, coube a Zé pintar a lateral de um edifício que dá vista para a avenida Antônio Carlos.
Preconceito
As marcas do racismo são perceptíveis no trabalho e na fala do pedreiro artista, já calejado de tanto ser alvo de olhares tortos. “No início me chamavam de ‘doido’. A gente é de cor, não sou padronizado”, diz. “As pessoas me viam estranho, diziam que eu ia pichar, mas, no decorrer do tempo, começaram a enxergar. Hoje em dia é só glória”, continua. Segundos depois, lembra que não faz muito tempo que foi detido ao pintar um muro que era puro pó de asfalto.
Enquanto as obras colorem a Lagoinha, o olhar do mercado estabelecido de artes visuais parece ainda não ter cruzado a avenida do Contorno.