Turismo e literatura

Os destinos pelos olhares de grandes autores em precisos relatos de viagens

Durante a pandemia surge uma forma de conhecer novos lugares; blog cria clube de assinatura com livros raros que narram percursos feitos por escritores

Por Paulo Campos
Publicado em 13 de outubro de 2020 | 13:57
 
 
 
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O que têm em comum a aposentada Regina Lúcia Savassi Ferreira Porto e o administrador de empresas Thiago Vinícius de Oliveira Barbosa? Ambos leram o best-seller “O Diário de Anne Frank” (1947) e organizaram uma viagem depois para conhecer a casa onde a garota judia alemã se escondeu dos nazistas com outras sete pessoas, entre 1942 e 1944. 

“A leitura do livro coincidiu com meus planos de viajar para a Europa, então incluí Amsterdã no roteiro”, afirma Thiago Barbosa, 39. O administrador de empresas chegou à capital holandesa durante a comemoração dos 90 anos de nascimento de Anne Frank, em 12 de junho de 2019. “Acabei de ler o livro um dia antes da minha visita”, conta. 

“É tudo como eu imaginava lendo o livro: o espaço pequeno, as escadas estreitas, o esconderijo secreto”, rememora Barbosa. “É impressionante imaginar o cenário e depois vê-lo pessoalmente”, acrescenta. Com Regina Ferreira Porto, 62, aconteceu a mesma coisa. “Fui a Amsterdã apenas para conhecer a casa-museu de Anne Frank”, enfatiza. 

A leitura de outro livro, a biografia “Leonardo da Vinci”, de Walter Isaacson, também estimulou Regina a viajar para Florença, em abril do ano passado, quando a região italiana comemorava os 500 anos de morte de seu mais famoso artista. Isaacson justifica em 700 páginas por que Da Vinci foi um gênio em todos os campos do conhecimento.

“Eu já morei em Florença, mas não conheci Vinci. Então peguei um trem até Spoleto e, de lá, um ônibus até a cidade”, relata Regina. “Na época, Vinci estava em festa. Lembro que quem comprasse ingresso para o Museu Leonardiano, a prefeitura levava e buscava até Anchiano, um vilarejo a 3 km, onde está a casa em que o artista morou na infância”, recorda. 

Em tempos de pandemia, muita gente que costumava viajar com frequência, como é o caso de Regina, se refugiou nos livros e nas séries. No momento, ela viaja nas palavras da norte-americana Frances Mayes nas memórias “Um Ano de Viagens”, em que a escritora compartilha lembranças de uma viagem a Portugal, Espanha, Marrocos, França, Turquia e Grécia. 

Frances Mayes é também autora de “Sob o Sol da Toscana”, que vendeu mais de 1 milhão de exemplares em todo mundo e foi adaptado para o cinema. “Foi só ler ‘Um ano de Viagens’ que fiquei com vontade de conhecer a Andaluzia”, salienta. A região mais autêntica da Espanha está nos planos da aposentada para assim que a pandemia der uma trégua.  

Descobrir lugares faz parte da profissão de Alfredo Savi, 48. Agente de viagens, ele aproveita os livros para agregar mais conhecimento. Guiado pelas palavras do indiano Javier Moro, em “O Sári Vermelho”, ele descobriu uma Índia muito diferente. “Me despertou o interesse de visitar o país e viver um pouco do que ele contava”, afirma Alfredo Savi.

“O Sári Vermelho” narra, de forma romanceada, a história verídica de Sonia Gandhi, que se tornaria Indira Gandhi, a primeira mulher a ocupar o cargo de chefe de governo na Índia, em 1966. A riqueza na descrição dos fatos e a força dos personagens fazem com que o leitor mergulhe nos costumes, nas crenças e nas tradições de uma Índia em formação. 

Mais tarde, em uma viagem para a Europa, Savi comprou “O Código Da Vinci”, de Dan Brown, no aeroporto e “devorou” o livro em um voo entre o Brasil e a França. Em Paris, resolveu seguir os passos do professor Robert Langdom, no cinema interpretado pelo ator Tom Hanks. “Eu percorri os lugares citados com o livro debaixo do braço”, comenta. 

“Esse é um livro de ficção que se passa em lugares reais. Você viaja no livro ‘in loco’”, afirma Savi. Entre os atrativos percorridos estão Museu do Louvre, Hotel Ritz, Arco do Carrossel, Jardim des Tuileries, igreja de Saint-Sulpice, Bois de Boulogne e rue Haxo. A viagem continuou em Londres, visitando Temple Church, Lincoln Cathedral, Centro Opus Dei e Saint James Park.

Relatos raros de viagem 

“Como sempre que me disponho a partir para longe, a minha viagem começa, mal ponho o pé fora da soleira de casa. É sempre assim: olho então para as coisas mesmo as mais banais e insignificantes com redobrada atenção, no desejo inconsciente de as guardar na retina para as levar comigo”, dizia a escritora Júlia Lopes de Almeida no livro “Jornadas de Meu País”. 

Júlia – que foi fundadora da Academia Brasileira de Letras, mas impedida de entrar na instituição por ser mulher – registrou o país em muitas crônicas e também fez viagens à Europa e à África. Ela foi a primeira escritora escolhida para integrar o clube de assinaturas Grandes Viajantes. O clube foi a solução encontrada pelo blog de viagens 360 Meridianos para sobreviver durante a pandemia. 

“Com o colapso do turismo, precisamos nos reinventar, e a resposta foi a literatura de viagem”, afirma Rafael Sette Câmara, um dos responsáveis pelo blog, ao lado das jornalistas Luiza Antunes e Natália Becattini.

O foco do projeto são edições raras, de escritores pouco conhecidos e que tratem do tema viagem. Por apenas R$ 9, o assinante recebe uma edição nova e digital do livro, adaptada para computador, tablet ou celular. 

Pelo interior do Brasil

De Júlia Lopes de Almeida, foi resgatado o conto “Gigante Brasilião”, fábula que narra a viagem de um órfão pelo interior do Brasil para reencontrar o pai e que cita vários lugares, entre eles as cataratas das Sete Quedas, que eram no Paraná e não existem mais, e a serra dos Órgãos, no Rio de Janeiro. “Fazemos uma pesquisa e resgatamos livros que não têm reedição há décadas”, explica Rafael Sette Câmara. 

Viagem à Itália

Foi assim que se descobriu o conto “Viagem a Sorrento”, de Nísia Floresta, educadora, escritora e poetisa considerada pioneira do feminismo no Brasil. Hoje, ela denomina uma cidade na Grande Natal (RN), famosa pela beleza de suas praias. “Nísia narra sua viagem à Itália por volta de 1860, quando ainda não tinha acontecido a unificação e o país ainda nem sequer existia”, enfatiza Sette Câmara. 

Do Rio a Congonhas

Do escritor João do Rio, a escolha recaiu sobre a crônica “Dias de Milagre”, publicada em série pela “Gazeta de Notícias”, em 1907. Curiosamente, a única versão que existiu por décadas em livro foi publicada em 1912, em Portugal, pela editora Lello e Irmão. Ele narra uma viagem do escritor do Rio de Janeiro para Congonhas para acompanhar o Jubileu de Bom Jesus de Matosinhos. Uma observação: pela primeira vez, depois de 239 anos, o jubileu foi realizado não da forma tradicional, mas sim virtual, por conta da pandemia. 

 Do Pará a Pernambuco

Uma raridade está a caminho neste mês de outubro: um livro escrito por José Coelho de Gama e Filho, o barão de Marajó, um político paraense e historiador que narra uma viagem de barco no livro “Do Amazonas ao Sena, Nilo, Bósphoro e Danúbio”. Para a coleção Grandes Viajantes, foi resgatado o trecho da viagem entre Belém, no Pará, e Recife, em Pernambuco. 

Trata-se de um livro extremamente raro, descoberto em uma biblioteca portuguesa e com uma única cópia em uma universidade dos Estados Unidos, que Rafael Sette Câmara acredita nunca ter sido publicado no Brasil. “Naquela época, no fim do Império, o barão já comentava que o brasileiro não se importava em não conhecer nada do Brasil, mas se envergonhava em dizer que não foi Paris”, destaca ele sobre a atualidade da obra. 

Junto com a coleção de livros, há outras recompensas, como e-books trimestrais, com dicas de destinos, como Bancoc e Cidade do México, e reportagens que situam os autores para os assinantes. O trabalho do trio não é pequeno: além de descobrir os escritores e localizar as obras, eles precisam adaptá-las ao português atual, criar notas para explicar expressões e fatos, fazer diagramação e capa novas para o formato digital. 

Serviço: 

Clube Grandes Viajantes. São duas categorias: R$ 9 e R$ 19. Assine no site https://www.catarse.me/360meridianos

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