O paulista Henrique Delevali de Almeida, 35, e a esposa, Priscila Bittencourt Delevali, 33, estão em Kampot, no Camboja, desde 29 de fevereiro. Pegos de surpresa pela pandemia do coronavírus, o casal de mochileiros não conseguiu voltar ao Brasil. “Descobrimos no Camboja um grande refúgio”, afirma Henrique.
Até ontem, o país asiático contava 274 casos da Covid-19 e nenhuma morte. “É até estranho. Vivemos em uma realidade paralela, porque a pandemia está ‘pegando’ no mundo, mas não sentimos o efeito dela aqui, a não ser pelas pessoas usando máscara e pelo fechamento dos países vizinhos”, conta.
Repatriados
O caso de Henrique e Priscila é apenas entre os 12,7 mil de brasileiros que estavam no exterior em março, segundo dados do Ministério das Relações Exteriores, quando vários países do mundo começaram a fechar as fronteiras aéreas e terrestres aos turistas.
Muitos deles foram repatriados, como é o caso do mochileiro Caio Morais, 30, que interrompeu a viagem de férias ao Vietnã. O mesmo aconteceu com o casal Thiago Ribeiro, 37, e Daniela Barros, 34, que planejaram uma volta ao mundo e aproveitaram um voo de repatriação a partir de Cusco, no Peru.
A mesma sorte não tiveram Laís Leite Machado Giorgeto, 30, e o marido, Tales Giorgeto, 34, que precisaram gastar os últimos dólares para deixar as Filipinas e retornar ao Brasil, aproveitando um voo com conexão na Coreia do Sul.
Mudança de planos
O que muda na vida de mochileiros como Henrique e Priscila, Caio, Laís e Tales, Thiago e Daniela com a pandemia do coronavírus? Henrique e Priscila esperam a abertura das fronteiras do Vietnã e Tailândia nas próximas semanas para continuar sua jornada. “Temos a partir de agora de nos adequar à pandemia, não pretendemos parar nossa viagem e voltar ao Brasil”, salienta Henrique.
Caio mudou de ideia e deve aproveitar o momento para viajar pelo Brasil, assim como Thiago e Daniela, que já visitaram Bonito, Porto de Galinhas e Maragogi. “Não tenho planos para o exterior até o ano que vem”, afirma Caio. Com viagem marcada para trilhar o caminho de Santiago de Campostela, Laís e Tales acharam mais prudente adiá-la.
"Novo normal"
O bom mochilão sempre foi uma combinação entre viagem de baixo custo e liberdade de se aventurar. Mas, como também aconteceu com os viajantes tradicionais, os mochileiros se deparam com um “novo normal”, com mais perguntas do que respostas.
Hospedar-se em um hostel é seguro? Compartilhar experiências por meio de aplicativos como Coachsurfing e Workaway são uma boa solução para diminuir os custos? Como ficam os deslocamentos?
No chat do site mochileiros.com, a maioria dos usuários concorda que o melhor no momento é acompanhar a situação e evitar planos em curto prazo. Mas há também quem acredite que, independentemente do fim da pandemia, o nicho mochileiro deverá sofrer muitas mudanças.
Couchsurfing
A “maratona” do casal Henrique Delevali de Almeida, o Rick, e Priscila Bittencourt Delevali dura dois anos e três meses. Ela começou em 14 de maio de 2018, em Amsterdã, na Holanda, e continuou por 26 países até a parada no Camboja. Do destino atual, eles pretendiam continuar pelo Vietna.
Mochileiros profissionais e proprietários do perfil @pandasnomundo no Instagram, o casal recorre a várias soluções para colocar o pé na estrada e economizar na viagem, como, por exemplo, o Couchsurfing, uma modalidade de hospedagem em que as pessoas oferecem acomodações aos viajantes pelo pleno prazer de se conectar com outras culturas.
“É um Airbnb com aspecto diferente”, explica Henrique. Ele reconhece que o Coachsurfing é um dos afetados diretamente pela pandemia, porque o medo e o receio tomaram a cabeça das pessoas. “Mochileiro é mais do que uma mochila nas costas e viajar barato, é preciso espírito de aventura, o desejo de ver outra cultura com seu próprio olhar”, afirma.
"Conexões"
Esse lado aventureiro levou o casal a conhecer pessoas como o egípcio Mohamed, responsável pelo desvio de sua rota de viagem no Egito, e a russa Valensiya, que se juntou aos dois em uma viagem ao Cáucaso, onde se localizam Armênia, Geórgia e Azerbaijão, países pertencentes à extinta União Soviética e que só em 2014 se abriram para os turistas.
“A gente valoriza essas conexões. Fizemos a Armênia toda de carona e com barraca emprestada”, relata o mochileiro. Essas “conexões”, pontua ele, também devem mudar por conta da necessidade de distanciamento social e da possibilidade de indivíduos assintomáticos transmitirem a doença. “Nem todo mundo vai estar disposto a receber”, diz.
Workaway
O casal paulista não vê mais a possibilidade de aderir ao Workway, uma plataforma que conecta viajantes sem dinheiro que querem trabalhar e pessoas que precisam de ajuda em seus negócios ou nas suas casas.
A troca, nesse caso, não envolve dinheiro, mas hospedagem e alimentação grátis.
Foi por meio do Workaway que Henrique e Priscila trabalharam por dez dias em uma fazenda de plantação orgânica a 200 km de Mumbai, na Índia. “A ideia era se conectar com a comunidade. Desenvolvíamos atividades desde arrancar erva daninha até a venda de nabos nos mercados locais”, recorda.
A pandemia fez rever o planejamento da dupla, de uma carona a um simples trabalho voluntário. “Sabemos que não é fácil viajar com restrições”, reconhece. Seus conselhos para um mochileiro agora são ficar mais tempo em cada lugar, seguir recomendações locais e evitar lugares com aglomerações. O seguro-viagem também entrou na lista de prioridades do casal. “O mochileiro raiz vai ter que colocar euros no bolso nesta pandemia”, enfatiza.
Óticas distintas
Largar tudo para trás, como emprego e família, vender os bens e se jogar no mundo faz parte da trajetória de casais como Laís e Tales Giorgeto e Thiago Ribeiro e Daniela Barros. No caso de Laís e Tales, a ideia era vivenciar experiências diferenciadas; já Thiago e Daniela planejavam uma volta ao mundo.
Em outubro de 2018, Laís e Tales, do perfil @livrespelomundo no Instagram, venderam os móveis e o carro e um mês depois já estavam na estrada. Nas lembranças estão um Workaway em uma fazenda na Eslovênia e uma excursão em ônibus pela África do Sul, acampando no caminho em destinos como Namíbia, Botsuana e Zimbábue. “Sempre viajamos nessa ‘pegada’ mochileira”, afirma Laís.
Limitação
Hoje, morando na casa dos pais no interior de Minas, o casal afirma que a maior limitação para viajar não serão as fronteiras fechadas, mas sim o custo. Um item que o casal vai levar em conta agora para organizar uma viagem ao exterior é a cotação do dólar e do euro. “Para o mochileiro, a viagem vai ficar bem mais cara”, lamenta Laís.
Ela, por exemplo, não agendaria agora hostel nem Workaway. “O trabalho voluntário era bom, porque ajudava a diluir o custo da viagem”, explica. Como faz parte do grupo de risco da Covid-19, a mineira viajaria em carro próprio, teria menos contato com outras pessoas, escolheria hospedagens individuais e destinos de natureza. Também não abriria mão de um seguro-viagem, prática que não era comum enquanto mochileira.
No Brasil
Thiago e Daniela, proprietários do perfil @juntosviajandopelommundo no Instagram, também largaram emprego, em fevereiro deste ano, com o propósito de realizar uma volta ao mundo. Começariam pelas Américas, depois África, Ásia, Oceania e Europa. Os dois anos sabáticos foram interrompidos pela pandemia, quando ainda estavam em Machu Picchu, no Peru, depois de passarem por Chile, Argentina e Bolívia.
“Sempre viajamos como mochileiros, hospedando em hostel, pegando carona e deixando para decidir muita coisa no destino”, explica Thiago. Os dois não desistiram de viajar mesmo na pandemia. De volta ao Brasil, em março, já foram para Bonito (MS), Porto de Galinhas (PE) e Maragogi (AL). “Queremos fazer pelo menos uma viagem por mês”, afirma.
"Custo-Covid"
Se as fronteiras forem abertas, o casal não hesitará em continuar sua volta ao mundo. “O risco que tenho em Campo Grande é o mesmo em qualquer destino, se não seguir as orientações de saúde”, afirma o mochileiro. "Usar máscara facial, levar na bagagem álcool em gel e evitar aglomerações são as regras básicas", reconhece ele.
A recomendação aos mochileiros se resume a viajar no próprio carro, reservar quartos privados em hostels, evitar aglomerações e socializar-se menos durante a viagem. Eles acreditam, como Laís e Tales, que o “custo Covid” será a maior restrição daqui para a frente. “Os custos de viagem vão subir”, explica.
Hostels reinventados
Com a pandemia, os hotels começaram a ser reinventados, uma vez que uma das características da hospedagem é o compartilhamento de ambientes, sobretudo os dormitórios. Segundo o diretor da SegurHotel, Inbal Blanc, empresa especializada em estratégias de segurança para hotéis e outros meios de hospedagem, o aumento da segurança e higiene deverá ser uma das novas características do novo modelo. Hostels terão que se comportar como pousada, investindo em quartos privativos ou divisórias.
O mochileiro Caio Morais, que começou a viajar nessa modalidade em 2011, já adotou desde cedo as hospedagens em quartos privativos. “Em muitos países, é mais barato do que hostel”, enfatiza. Como geralmente viaja sozinho, ele aconselha planejar o mínimo possível. “Se você não tem uma regra, é melhor, porque até o perrengue como essa pandemia é experiência”, afirma.
Acampamentos
O ano sabático de Caio por 11 países foi interrompido no Vietnã. “Como mochileiro, sempre levei comigo álcool em gel”, salienta. Daqui para a frente, uma de suas opções será a escolha por destinos de natureza e acampamentos. Os campings representam neste momento mais segurança e individualidade, além de oferecer uma boa economia.
“Na verdade, nada muda muito em relação ao que fazia antes, a exceção é a exigência de distanciamento”, assinala Caio. O mochileiro ainda demostra receio de viajar para o exterior. Seus planos até meados de 2021 se concentram no Brasil, até por conta as fronteiras fechadas. “Pena que até lá muita gente vai deixar de viajar”, conclui.