Em uma das avenidas mais movimentadas de Belo Horizonte, uma mangueira que antes fazia sombra para os carros que estacionavam embaixo agora serve de sustentação para uma criativa moradia. Dois amigos que viviam nas ruas construíram uma “casa na árvore”, de dois andares, em plena avenida Barão Homem de Melo, no bairro Nova Suíça, região Oeste da capital. Ela foi toda montada – e bem decorada – com coisas que haviam sido descartadas. As paredes e o piso são feitos de tábua corrida, madeirite, fórmica, MDF, portas velhas de imóveis e guarda-roupas. Sombrinhas quebradas dão o colorido e protegem a madeira.
A entrada da casa ganhou grama verde reaproveitada de um vizinho. As plantas que crescem ali, com molduras em volta, viraram quadros de natureza viva. Paletes de madeira e uma rede compõem a varanda, onde há também uma prateleira de livros achados no lixo, que formam uma espécie de “biblioteca pública” para quem quiser pegar, trocar ou dar. E a “construção” tem chamado atenção dos que passam pela avenida. Muitos param, olham, escolhem um exemplar, conhecem a casa e voltam com doações. “É muito livro que se joga fora, muito conhecimento. Nem todo mundo tem acesso à internet. Eu acho bonito quem gosta de ler. Saber não ocupa espaço”, afirmou um dos ‘construtores’ da casa, Klinger Douglas Rodrigues, 42, um cabeleireiro que estudou até a quinta série, lê pouco – as vistas embaralham –, mas sabe das coisas.
Rodrigues diz que pela leitura é possível conhecer “um mundo inteiro sem sair do lugar”, mas ele acabou fazendo isso por meio das drogas. “Fiz escolhas erradas. A gente nunca ouve o que a mãe da gente fala. Ela sempre tem razão”, admitiu. Ele chegou a ter um salão de beleza com oito funcionários e perdeu tudo para o crack. Viveu na pele aquilo que mais desprezava: “Eu não tinha humildade, era muito arrogante, tratava todo mundo diferente, achava que era melhor do que as pessoas”. Rodrigues descobriu que “todo mundo é igual, que ninguém vai cheirar a perfume francês quando morrer”. Assim, depois de 13 anos de idas e vindas da rua, há dez meses vem largando o vício. Hoje, está reerguendo-se junto com a casa.
Começo. Um ano e dois meses atrás, o amigo de Rodrigues, também cabeleireiro, Warlei Santos, 31, teve a ideia de construir a casa sob a mangueira. Começaram com uma lona e um colchão, e, aos poucos, a residência foi tomando forma. O segundo andar foi concluído há quatro meses, e o jardim florido na frente, há dois. “Eu ajudei muito, mas ele (Rodrigues) levantou e decorou tudo. Gay gosta das coisas perfeitas”, disse Santos, afirmando ser homossexual.
Para ele, o mais difícil foi o julgamento da sociedade. “Todo morador de rua é visto como usuário, pessoa sem futuro. Mas todo mundo tem futuro, basta querer. Estou acostumado com preconceito, encaro no peito, mas dói mais que um tapa”, declarou. Agora, com tudo arrumadinho, boa parte da vizinhança gosta, colabora e conta com eles para manter a região segura.
Ao redor tem um supermercado grande, onde os dois amigos fazem as necessidades fisiológicas – algumas vezes utilizam garrafas plásticas –, já que a casa não tem banheiro. Restaurantes levam comida para eles após as 14h, pois também não há cozinha, só fogão improvisado com fogo, óleo e álcool, que, quando a noite cai, ajuda a iluminar os quatro cômodos, salas e quartos separados por divisórias.
À luz de velas, entrevistamos Rodrigues, que havia passado o dia trabalhando em um jardim. Trouxe resto de tinta para pintar o meio- fio, mas, antes, ele nos convidou para entrar e conhecer seu quarto, no primeiro andar. “Não se preocupe, já subiram sete aqui e não caiu”, brincou.
FOTO: Douglas Magno |
A casa não tem energia elétrica, é iluminada com velas; Rodrigues diz que com lâmpada não seria a mesma coisa |
‘É humilde, mas aconchegante’
A noite estava fria do lado de fora, mas as madeiras deixavam a casa na árvore quentinha. Dentro de um cômodo, apertadinhos, cinco pessoas, vizinhos e moradores de rua, jogavam baralho. No quadro atrás deles estava escrito “união”. “É humilde, mas aconchegante”, comentou Bruno Adriano Campos, 35, que mora na casa há quatro meses. Antes, ele vivia num albergue público. “Estou na rua desde os 16 anos e nunca dormi em um lugar como esse”. Warlei Santos, 30, e o namorado, Marlon Pires, 18, o acolheram de um lado da residência. Do outro lado, fica Klinger Douglas Rodrigues.
“A casa virou um centro de apoio, a gente ganha muita coisa. Daí doamos agasalho, coberta, alimento”, falou Pires. A polícia já foi ver se tinha drogas e não achou. “Não vamos queimar o filme com os vizinhos”, pontuou Santos. O que tem para oferecer são livros. “Furtar educação é coisa que a gente precisa”, brincou. Ele gosta da casa limpa e organizada. A luminária virou fruteira, mas só havia batatas. “Não é ideal para morar. Não sei se essa casa vai ser para sempre, mas tenho certeza que vai ficar na história”, disse.
Eles acreditam que fazem ali um serviço de utilidade pública. Rodrigues percebeu que o pé de manga estava querendo morrer e, agora, toma banho dentro da casa para irrigar a terra. “A árvore até floriu mais rápido. Já é a terceira remessa de manga que chupo”, contou.
Irregularidade. Segundo a Secretaria de Administração Regional Oeste, a construção tem características de moradia provisória e uma notificação por invasão de lugar público foi emitida em setembro de 2016, além de um auto de infração. “Os serviços ofertados pela prefeitura constituem alternativas de possíveis saídas das ruas”, informou o órgão.