O imóvel residencial mais antigo de Belo Horizonte, a Casa da Fazendinha, de 1894, não carrega toda a pompa que se imagina para a sede de uma grande propriedade rural. Apesar da importância histórica, quem visita o casarão na barragem Santa Lúcia, na região Centro-Sul, tombado como patrimônio municipal em 1992, se assusta: cômodos tomados por lixo, mau cheiro por causa de animais mortos e estrutura abalada, não apenas pelo tempo, mas também pelo incêndio que matou seu último morador, em 15 de junho.
“Quando é história de gente rica, tem tudo documentado, há cuidado. Aqui, nossa história é contada pela própria comunidade, pelos moradores mais antigos, só que essa história está morrendo com a casa. O maior medo da minha mãe era tomarem a casa. Tomar eles não vão, mas vão deixar ela cair”, lamentou a agente comunitária de saúde Flávia Regina Rocha da Silva, 47, irmã de Orlando Josias Rodrigues Magalhães, 54, vítima do incêndio.
A história do aglomerado também se mistura com a do casarão, que seria a sede da fazenda Cercado. “Acho que todos os moradores têm histórias com essa casa. Eu cresci aqui, correndo no quintal. O povo falava que era a casa de escravos e que eles arrastavam correntes. Na imaginação, a gente ouvia mesmo. Fiz xixi na cama até os 12 anos por medo de ir ao banheiro, que ficava do lado de fora da casa”, brincou Flávia.
A mulher afirmou que o casarão só foi tombado pela Prefeitura de Belo Horizonte após mobilização dos moradores, na década de 90. Desde então, o local passou por uma obra de contenção de encosta.
Recomendação. Em 2012, já com o risco de desabar atestado pela Defesa Civil, o Ministério Público de Minas Gerais recomendou que a prefeitura fizesse obras de contenção e restaurasse a estrutura, mas, para isso, deveria remover as famílias que ali viviam. “Eles pagaram o aluguel para o meu irmão, mas deixaram a casa aí, e bandidos começaram a invadir, usar para coisa ruim. Depois de oito meses, com medo de perder a casa, Orlando voltou”, explicou Flávia.
Naquele ano, procurado por O TEMPO, o Executivo municipal informou que a área seria contemplada com intervenções do programa de urbanização Vila Viva e que lá seria implantado um Centro BH-Cidadania pela Secretaria Municipal de Políticas Sociais, com “projeto e execução que deveriam incorporar a construção histórica como forma de preservar a memória da comunidade e da cidade”.
Flávia relembrou que vários técnicos estiveram na residência, tiraram medidas, fizeram fotos e disseram que fariam o orçamento da obra. “Chamaram minha mãe para uma reunião, mostraram um projeto de um museu lindo, reformando a casa toda. Mas a gente não poderia frequentar, iam construir casas para as famílias no fundo e sem acesso, o que não aceitamos. Desde então, se cortamos uma árvore que está caindo ou fazemos qualquer obra no entorno, nos multam. Já perdi as esperanças de ver a casa reformada”, disse.
Conforme a promotora de Justiça do Meio Ambiente e Patrimônio Cultural, Lilian Marotta, o Ministério Público acompanha a situação do casarão. Uma ação civil pública foi ajuizada, e a Justiça já havia determinado, por meio de liminar, as obras de contenção. Entretanto, ainda não há uma decisão quanto à restauração.
Saiba mais
Histórico. A Casa da Fazendinha (hoje no Santa Lúcia) fica na área da fazenda Cercado, que surgiu em 1701 no antigo Curral del Rey. Já Belo Horizonte foi fundada em 12 de dezembro de 1897.
Detalhes
Posse. O terreno do casarão da barragem Santa Lúcia é do governo do Estado, conforme a Fundação Municipal de Cultura. Os ocupantes têm a posse por decisão judicial, pois habitavam o local há mais de 40 anos.
Ideia.Com relação ao recurso do Vila Viva para viabilizar um Centro BH-Cidadania, a fundação confirmou que ele não foi viabilizado.
Rede social. O arquiteto Ivan Araújo criou, em 2015, a página Casas de BH no Facebook, com a ideia de identificar as residências antigas da cidade e, quando possível, contar um pouco da história delas. “A preservação é algo muito importante, uma vez que essas casas retratam o pensamento arquitetônico da época em que foram construídas”, disse.
Restauração já está aprovada
No dia do incêndio que matou Orlando Josias Rodrigues Magalhães, a Fundação Municipal de Cultura, responsável pela gestão de patrimônios da cidade, informou que não havia prometido restauração para a Casa da Fazendinha, uma vez que se tratava de propriedade particular. Porém, a reportagem localizou a ata de uma reunião ordinária do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte, de 2014, em que foi aprovado um projeto de restauração do local pela prefeitura.
Questionada, a fundação confirmou a aprovação de um projeto de restauro e informou que uma das formas para viabilizá-lo é por meio de uma Operação Urbana Simplificada (OUS). Esse processo, que flexibilizaria padrões construtivos para outro empreendimento, teria como contrapartida o custeio do reparo na casa.
Toda operação urbana precisa ser remetida à Câmara de Vereadores para votação. Segundo a Secretaria Municipal Adjunta de Planejamento Urbano, responsável por remeter o texto à Casa, a proposta envolve um empreendimento no bairro Luxemburgo, também na região Centro-Sul, e ainda precisa ser debatida em audiência pública, o que deve ocorrer em até 45 dias.
Imediato. O Corpo de Bombeiros e a Defesa Civil estão elaborando, a pedido do Ministério Público, laudos para atestar a estabilidade estrutural. Segundo a fundação, se necessário, a Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap) poderá ser acionada para escorar o imóvel. (JVC)