Uma das várias contribuições do cinema pernambucano foi apresentar ao país grandes atores com menos cara de Globo e mais cara de Brasil. Presente em filmes como “O Som ao Redor” e “Boi Neon”, Maeve Jinkings é um dos melhores exemplos. Ao contrário do que você deve pensar, contudo, ela não é pernambucana. Leia abaixo nosso papo com ela e entenda como ela se tornou uma recifense honorária.
Você lembra da primeira vez que viu o “Baile Perfumado” e qual foi sua reação a ele? Que imagem ou cena você guarda do filme na memória?
Assisti em São Paulo, numa sessão especial do Festival de Cinema Latino Americano, logo depois de minha primeira temporada em Recife. Saí arrebatada. Jamais esqueceria das tomadas aéreas sobre aquele cânion pernambucano ao som de Nação Zumbi. Até onde me lembro, foi o melhor filme brasileiro de ação que assisti até então.
Você é brasiliense, cresceu em Belém, foi para São Paulo e só foi parar em Recife em 2010. Qual foi o momento em que decidiu ficar ali e morar um tempo - e o porquê dessa decisão?
Cheguei como turista em dezembro de 2008 para passar 15 dias. Adiei minha passagem cinco vezes e fiquei quase três meses, o que me permitiu vivenciar um período particularmente fervilhante da cena local, que são festas e folguedos de final de ano e pré carnavalescos. Estava recém formada na Escola de Artes Dramáticas da USP, e perguntava a mim mesma o queria falar como artista, com quais parceiros. Encontrei em Recife uma cena cultural altamente expressiva, com artistas que pareciam ter uma identidade muito própria. Lia Solano Trindade, escutava Siba, Karina Buhr, Science e Alessandra Leão. Assistia a Cláudio Assis e Lírio. Isso me impressionou e, antes mesmo de voltar,comecei a investigar a cena teatral em Recife. Mas foi o cinema que me trouxe de volta sete meses depois para filmar o primeiro curta. A essa altura, eu já estava muito envolvida com a cidade e, em janeiro de 2010, vim experimentar viver por um tempo.
Tem muita gente que acha que você é pernambucana por causa dos filmes?
O publico de cinema faz isso o tempo inteiro e confesso que até gosto.... é resultado de uma relação forte com o cinema e a cidade do Recife. O público de novela fica confuso, os pernambucanos principalmente. Eles me veem aqui e acham que sou turista. Faço questão de dizer “Sabe que o cinema de seu Estado me trouxe pra cá, e que é atualmente o mais expressivo do Brasil? Já foi ao Cinema São Luís, no Centro?”. Tento levar um pouco de público da TV para o cinema.
Para você, o que tem de diferente em trabalhar com o pessoal daí?
Minha experiência anterior foi com Carlos Reichenbach, que é outra geração. De fato, os sets aqui me parecem menos tensos do que numa cidade superlativa como São Paulo, e as relações mais horizontais. Mas acredito que esse cinema que conheci aqui diz respeito a uma geração, assim como um modo de fazer cinema autoral. Quando filmei em São Paulo com Gabriela Amaral Almeida, ou quando fiz reuniões para um projeto com Adirley Queirós, me pareceu uma forma similar de fazer cinema.
E qual o motivo que tornou a produção de Pernambuco a mais importante do país nesses últimos 20 anos?
Minha impressão é de que Recife sempre foi altamente cinéfila e conta com uma cultura acima da média, ao contrário do que muitos pensam no Sudeste. Mas talvez o pulo do gato seja a enorme vocação deles para o vanguardismo, a experimentação, a desobediência. O audiovisual aqui também está longe da produção do mainstream, o que talvez ajude a resistir à tentação de corresponder a expectativas da indústria e os vícios que vêm com isso. No entanto, não viveríamos esse chamado “ciclo de ouro” do cinema, não fossem as facilidades tecnológicas dessa geração e, principalmente, do enorme avanço dos editais para produção audiovisual que vieram no governo de Eduardo Campos. Desde a geração de Paulo Caldas, Lírio e Claudão, eles vêm lutando muito por leis que garantam a continuidade dessa produção. Espero que isso não se perca no atual governo que, desde o primeiro dia, faz questão de mostrar que considera cultura algo supérfluo.
Algum causo ou história engraçada fazendo essas produções pernambucanas?
Diversas. Quando estávamos filmando a famosa cena do baseado com aspirador de pó, estava muito desconfortável fumar o baseado cênico, Kléber disse “não sinto que você está sentindo prazer”. Claro, aquilo estava horrível, ardia a garganta! Então, eles me ofereceram o real. E eu fumei um baseado e meio em 40 minutos, para fazer três takes longos. Acontece que não sou fumante, e depois tínhamos que fazer a cena da personagem diante do espelho acendendo o baseado. Nesse ponto eu já não conseguia entender nada do que Kléber queria, ele dava ação e eu ficava horas me olhando no espelho (risos). Eu disse “Não sei de vocês, mas eu já não estou mais trabalhando. Isso não é uma festa?”.
Você foi uma das protagonistas d'O Som, foi preparadora de elenco no “Big Jato”, está agora no “Aquarius”. Qual a importância do cinema pernambucano na sua carreira?
O cinema de Pernambuco foi minha escola de atuação para cinema, de pensar o cinema. Me possibilitou redescobrir o Brasil para além do eixo RJ-SP, e creio que permitiu que o Brasil me descobrisse também. A própria TV me chamou depois do cinema pernambucano.
Você tem algum filme ou alguma cena favorita dessa produção pernambucana dos últimos 20 anos?
Poderia falar de várias, gosto muito da cena ícone do pesadelo da classe média em “O Som ao Redor”, com a invasão dos rapazes na casa da menina. Aquela cena condensa muitas camadas sobre nossa relação com o mundo e com o outro, ao mesmo tempo em que me parece uma revolução bolchevique moderna. Naquela noite fui para o set como fotógrafa, e jamais esqueço a potência narrativa do som emitido pelos pulos deles caindo no jardim da casa. Também gosto muito da cena de Nanda Costa e Irandhir Santos em “A Febre do Rato”, quando a personagem dela faz xixi nas mãos dele, ao mesmo tempo em que se equilibra sobre uma canoa. Acho essa cena muito poderosa, uma cena de absoluta intimidade física e erótica ao mesmo tempo em que os personagens nunca consumam a relação deles.