São Paulo. À primeira vista, “O Realismo Impossível” (Ed. Autêntica, R$ 47, 224 págs.) é uma provocação mais do que qualquer outra coisa: afinal não é André Bazin o realista por excelência? Mas esta reunião de textos do crítico e teórico francês justifica, sim, o nome do livro. Mário Alves Coutinho, responsável por esta edição (seleção, tradução, introdução etc.) e, antes, por uma tese sobre Godard defendida na França, sabe que propor o realismo como condição ontológica do cinema é, já, colocar em discussão sua possibilidade.
A questão do realismo permeia praticamente todos os textos de Bazin. É a condição essencial do cinema, em sua visão. Botando de ponta-cabeça a teoria segundo a qual o cinema se constitui como arte na medida em que se afasta da realidade (pela iluminação, pela angulação etc.), Bazin postulará que o acaso e a realidade têm mais talento do que todos os cineastas do mundo.
O realismo baziniano não é tão simples quanto possa parecer. Em primeiro lugar, porque a arte do cinema parte, justamente, da impossibilidade de ver tudo. “A câmera tem limites e a mais realista de todas as artes (...) não pode apreender a realidade inteira, ela lhe escapa necessariamente por algum lado”. A arte consiste, portanto, antes de tudo, em escolher a melhor maneira de revelar o real. Não se trata de acumular aparências, mas de despojá-lo de tudo que não seja essencial. Promover, em suma, um encontro entre os objetos e nossos olhos. Trazer ao espectador o mistério e a ambiguidade das coisas, que nossos olhos não saberiam apreender.
Renoir. E quem melhor para exemplificar esse pensamento do que Jean Renoir? Primeiro, porque a admiração de Bazin por ele é incondicional. Segundo, porque Renoir soube se opor a praticamente todo o cinema francês de seu tempo, que considerava excessivamente intelectual, para ir, justamente, ao encontro das coisas. Em terceiro lugar, porque a diversidade da obra de Renoir é praticamente igual: há ali o mudo e o sonoro, o preto e branco e o colorido, a comédia e a tragédia, o cinema francês e o americano... Mais do que outro cineasta, Renoir justifica a ideia de que o cinema não é feito para reconstruir o real, mas para permitir que vejamos o real, como em linhas gerais diz Alain Bergala no posfácio do livro.
E, nesse caso, o papel essencial do artista consiste em apagar os traços de qualquer reconstrução: deixar-nos a impressão de que aquilo ocorre. Transparente. Mas, ao mesmo tempo, trata-se de passar de uma arte do dizer e do pensar a uma arte do mostrar. Ou seja, a uma arte que, captando o real em toda sua ambiguidade, nos coloque diante de escolhas, nos faça livres.
Dito isso, a primeira parte deste volume é incompleta: a morte prematura de Bazin, em 1958, aos 40 anos, precede a de Renoir. Sobre alguns filmes ele deixou apenas anotações. Para compensar, o volume nos traz textos de “O Cinema da Ocupação e da Resistência”, outra antologia de textos bazinianos, dedicados, estes, a esse momento de passagem, que interessa tanto pelo surgimento de cineastas centrais (Robert Bresson, cujo filme inaugural é de 1943) como, depois, pela liberação, pela invasão hollywoodiana, pelo surgimento da cinefilia.
Momento em que Bazin, talvez no auge de sua produção, infatigavelmente ilustra e demonstra o que é a arte do cinema. Quem ler “O Realismo Impossível” não apenas perceberá melhor o que é o cinema, o que é a arte de Renoir, como poderá compreender por que não existiu antes e dificilmente existirá depois dele um teórico que tenha tão profundamente influenciado a arte mais próxima do homem, para retomar o dizer de Godard. Isto posto: 1. “O Que É o Cinema” continua a ser o Bazin essencial; 2. Todo texto de Bazin é essencial, os deste volume entre eles. (Inácio Araújo)