Em vez de Thor, Hulk ou Capitão América, que são personagens da Marvel Comics, o quadrinista Hugo Canuto levou Ogum, Exu e Iemanjá, entre outros Orixás, para uma série de capas recriadas por ele. A iniciativa, divulgada em agosto, surgiu como uma homenagem ao desenhista norte-americano Jack Kirby (1917 – 1994), que fez história naquela editora especializada em quadrinhos de super-heróis.
O baiano, atualmente radicado em São Paulo, conta que o retorno do público à proposta foi imenso. Isso o estimulou a conceber algumas narrativas inspiradas na trajetória de personagens oriundos das mitologias africanas e afro-brasileiras. “Com a repercussão positiva, deixei a imaginação fluir e surgiu outra capa, dessa vez com Xangô. Foi um estrondo, muita gente entrou em contato, escrevendo sobre o quanto haviam se identificado com a ideia de levar nossa diversidade cultural para o universo dos quadrinhos”, afirma Canuto.
“Assim nasceu o projeto ‘Contos de Òrun Àiyè’, cuja primeira história será lançada em 2017”, completa ele que lançou uma campanha de financiamento coletivo para realizar o álbum, alcançando a meta de R$ 12 mil em apenas uma semana. “Ficamos surpreendidos e fomos atrás das metas estendidas para ampliar a qualidade do material a ser publicado, número de páginas, acabamento gráfico, além de melhoras nas recompensas para os doadores”, diz.
Para Canuto, isso demonstra o interesse dos leitores pelo segmento. “É sinal de que existe essa demanda de público por histórias ligadas a cultura afro-brasileira, apresentadas de maneira inovadora, ao mesmo tempo em que respeita a tradição”, pontua o autor. Além dele, o trio Alex Mir, Caio Majado e Omar Viñole também se enveredou por esse nicho, em 2011, quando foi lançado “Orixás: Do Orum ao Ayê”. No ano passado, Mir e Majado também trouxeram a público o volume “Orixás: O Dia do Silêncio”.
Majado explica que o primeiro volume surgiu após ser contemplado no Programa de Ação Cultural (ProAC), de São Paulo, em 2010. “O segundo livro, embora nós o tenhamos realizado em 2015, traz uma série de pequenas histórias que produzimos anteriormente, entre 2008 e 2009. Elas não eram inéditas como o álbum de estreia”, afirma o desenhista.
Mir acrescenta que eles decidiram publicar essa coletânea justamente porque as pessoas gostaram muito de “Do Orum ao Ayê” e cobravam uma continuação. “Até hoje esse é o título que mais vendemos. Os leitores frequentemente pedem mais histórias e, por isso, resolvemos criar ‘O Dia do Silêncio’. Muitos professores de escolas também se interessaram pelos volumes, que até já viraram objeto de estudo”, diz o escritor e roteirista.
Ele também antecipa que, em razão dessa procura e do interesse pessoal por esse tipo de repertório, já concebeu cinco novas histórias, a serem lançadas em 2017. Mir detalha que cada uma dessas narrativas serão protagonizadas por um Orixá diferente. São eles Xangô, Ogum, Oxóssi, Oxum e Iroco. “A ideia é contar como cada Orixá se relaciona a um elemento, como a terra, o fogo, a água e o ar. As histórias são independentes, e eu convidei cinco desenhistas diferentes para trabalhar nesse projeto”, afirma Mir.
Ele ressalta que atualmente há uma oferta maior de conteúdos sobre essa temática em comparação com o ano de 2008. “Quando comecei a produzir essas histórias quase não havia trabalhos semelhantes sobre isso. Muita coisa mudou de lá para cá, e hoje nós vamos às livrarias e encontramos alguns trabalhos que abordam essas mitologias na literatura, além dos quadrinhos”, completa ele.
São exemplos o romance “A Saga de Orum: Os Guerreiros Sagrados”, da brasileira Lara Orlow, e a trilogia “Deuses de Dois Mundos”, do brasileiro PJ Pereira, que vive nos Estados Unidos. Em 2013, ele publicou o primeiro exemplar da série concluída em 2015 e centrada numa narrativa que mescla tradições africanas e afro-brasileiras. Ao todo, a trilogia já vendeu mais de 50 mil exemplares e, inclusive, teve os direitos vendidos para uma empresa norte-americana interessada em adaptar a ficção para televisão e cinema.
Para PJ Pereira, toda essa repercussão de seus títulos entre os leitores nacionais mostrou “que o Brasil se interessa pelo Brasil”. Ao refletir sobre o motivo de a presença de obras como as suas ser mais recente, ele atribui isso a um “preconceito estrutural”.
“Das pessoas, dos grupos, do mercado... não existe para Thor ser mais conhecido e entendido que Xangô dentro do Brasil. E isso me inclui. Anos atrás eu me dei conta de como sempre li sobre mitologia e não conhecia a iorubá, que é tão influente na nossa cultura. Senti como se o mundo tivesse escondido essas histórias de mim, me negado acesso a elas. Então fui pesquisar, e da pesquisa deu vontade de escrever”, relata.
“O retorno que ouço dos leitores é que, sim, os preconceitos e os estereótipos caem por terra imediatamente. E é uma sensação bacana quando vejo jovens, especialmente negros, passando a se enxergar não como descendentes de escravos, mas herdeiros de reis, rainhas e guerreiros tão poderosos que se tornaram deuses”, conclui o escritor.
Cultura
O potencial de um repertório ainda pouco conhecido
FOTO: Hugo Canuto / Divulgação |
Uma das capas criadas por Hugo Canuto com a figura de Orixás |
Hugo Canuto, Alex Mir e Caio Majado compartilham a experiência de levar para o universo dos quadrinhos lendas e histórias que pertencem às tradições africana e afro-brasileira. Canuto, por exemplo, estreou nesse universo com o trabalho “A Canção de Mayrube”, lançado em 2015, durante a Comic Con Experience, realizada em São Paulo. De acordo com ele, a revista se baseia nos costumes dos povos ligados à origem da América Latina, como Guaranis, Iorubás e Incas, entre outros.
“Esse interesse surgiu quando, após uma curta viagem à aldeia indígena dos Kiriris, no sertão da Bahia, descobri que meu avô materno nascera ali, tendo portanto uma ascendência até então desconhecida”, conta ele que revela o interesse em transformar o volume em livro a ser publicado em 2018. Ao comentar sobre seu interesse em mitologias, ele ressalta como elas são capazes de oferecer uma fonte inesgotável e poderosa de narrativas que “reafirmam as tradições e nos lembram que, por trás de um mundo de luzes e consumismo, existe algo maior que une os povos”, afirma ele.
“A importância do nosso trabalho está em adaptar para a linguagem dos quadrinhos algumas histórias que atravessaram o tempo e as distâncias, mantendo a mesma sabedoria e encantamento de quando eram contadas nas velhas cidades da África ocidental, e são parte da nossa identidade coletiva. Acredito que é necessário valorizar um dos pilares do Brasil, que infelizmente ainda sofre com discriminação e preconceitos”, acrescenta Canuto.
Mir também pontua que se interessa por esse tipo de conteúdo há muitos anos e sempre deu uma atenção especial para o repertório desenvolvido em território brasileiro. “Eu sempre gostei de pesquisar o folclore e criei um projeto baseado em nas regiões brasileiras com representantes de cada Estado. Quando fui criar o ligado à Bahia, pensei num Orixá. Assim, comecei a pesquisar e passei a me interessar cada vez mais pelas histórias. Acho que as pessoas, na verdade, nunca se atentaram para o quão rica é a mitologia africana, o que, mais recentemente, vem mudando”, afirma o roteirista.
Majado, por sua vez, que trabalhou na construção dos desenhos de “Orixás: Do Orum ao Ayê”, ao lado de Mir e Omar Viñole, comenta como a falta de referências para lidar com esse repertório trouxe desafios durante o processo criativo. “Eu estou acostumado a desenhar personagens caucasianos. Então, minha primeira dificuldade foi conseguir afinar meu traço para que os personagens negros não ficassem caricaturais. A pesquisa foi a parte mais difícil, porque há poucas imagens sobre esse universo disponíveis. Por outro lado, essa também foi uma parte divertida, porque você pode propor sua própria versão”, diz Majado.