Quando montou “Cara de Cavalo” em 2012, narrando o surgimento do que viria a ser conhecido como o “esquadrão da morte” no Rio de Janeiro à época do golpe civil-militar de 1964, o diretor Marco Nunes não tinha a intenção de criar uma trilogia que usasse o “Rio do passado para entender o Brasil do presente”. Mas foi isso que aconteceu. Em 2015, ele voltou ainda mais no tempo com “Caranguejo Overdrive”, retratando as mudanças urbanísticas na cidade com a chegada da família real portuguesa no início do século XIX.
Foi durante a pesquisa para esse espetáculo que ele releu o livro “O Povo Brasileiro”, de Darcy Ribeiro, que acabou inspirando “Guanabara Canibal” – capítulo final da trilogia da Aquela Cia., que inicia sua temporada nesta sexta (24) e fica até 18 de dezembro no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de Belo Horizonte. “Quando ele fala do índio em um dos capítulos, cita o poema do José de Anchieta sobre os feitos de Mem de Sá durante o extermínio do povo Tupinambá que vivia no litoral. O Rio nasce desse extermínio”, conta Nunes.
E isso fez o diretor perceber que uma cidade marcada hoje pela violência nasceu de um episódio de extrema violência. “Isso está na origem dessa crise social enorme que vivemos hoje, para além da segurança pública. E me deu certeza absoluta de que essa trilogia tinha que terminar na origem, no início de tudo”, explica.
Para levar essa história ao palco, Nunes parte de uma festa de comemoração dos 400 anos do Rio de Janeiro. Nela, um grupo etnicamente diverso decide ouvir o disco que Amaral Netto – jornalista e deputado ligado ao regime militar – gravou narrando o extermínio Tupinambá de forma teatral. “Ele narra como se estivesse ao vivo, no calor do momento. Entrevista o Anchieta, o Mem de Sá. É chocante”, descreve o diretor.
Quando começa a ouvir o disco, o grupo é transportado para uma aldeia Tupinambá – bem no momento em que um homem branco acaba de ser capturado e passa a ser preparado para um ritual canibal – e vivencia essa história por outro ângulo. “Paralelo a esse ritual canibal, as tropas do Mem de Sá estão vindo destruir a aldeia, mas o público só sabe dessa campanha portuguesa por informes rápidos”, completa Nunes.
Essa é uma das várias escolhas que o diretor faz para encenar uma história quase impossível de ser levada ao palco de forma realista. “O que é um ritual canibal? O que é o extermínio de uma etnia? Por mais que eu tenha uma imaginação fértil, não conseguiria chegar a esse lugar. Então, o que eu tento é proporcionar uma sensibilização imagética e sensorial dessas questões por meio dos recursos que o teatro me oferece: o texto poético de Pedro Kosovski, o corpo dos atores, muita música, projeção, terra, substâncias com cheiros e cores”, argumenta o diretor.
Fases. O diretor divide essa experiência sensorial em três momentos: a apresentação da aldeia e dos envolvidos no ritual; o ritual em si; e o final com o retorno à festa para constatar os desdobramentos contemporâneos da história narrada. Esse terceiro ato, para Nunes, é fundamental, porque ele afirma que só lhe interessa olhar esse passado para enxergar como ele dialoga com o hoje. “E essa violência não foi resolvida. Ela é uma violência social, racial e econômica que persiste hoje, com grupos que se identificam com essa ‘etnia ocidental’ e se sentem no direito de escravizar e exterminar os outros”, dispara.
Para quem pode achar que o diretor corre um risco ao encenar parte da história indígena no palco sem atores que sejam realmente índios, Nunes afirma que montou um elenco propositalmente diverso – um branco, um negro, um mestiço e uma colombiana, Carolina Virguez, descendente das tribos de seu país. E ele diz ainda acreditar no que o pesquisador Eduardo Viveiros de Castro afirma, que “somos todos índios” e temos que parar de enxergar a história do ponto de vista europeu e aceitar o que somos. “Claro que isso tudo é um esforço de descolonização. A peça é esse esforço, e ele tem que ser realizado no nosso cotidiano o tempo todo”, propõe.
Programe-se
“Guanabara Canibal”
Quando. De 24.11 a 18.12, de sexta a segunda, às 20h
Onde. CCBB (Praça da Liberdade, 450, Funcionários)
Quanto. R$ 20 (inteira)