No início dos anos 2000, a Lapa carioca era um lugar decrépito. Abandonada, mal iluminada, fétida e com pivetes praticando assaltos. O som que embalava as noites do bairro carioca vinha dos barzinhos onde artistas em começo de carreira se apresentavam sem muitas ambições.
Quatorze anos depois, um desses cantores de botequim estreava em musicais de um jeito ambicioso. A peça era “Ópera do Malandro”, de Chico Buarque, que retrata a malandragem carioca durante os anos 40 e se passa exatamente na mesma Lapa. O local da estreia era o Teatro Municipal do Rio de Janeiro, um espaço mais afeito a receber grandezas estelares das artes do que “intrusos”, como cantores de bares da zona boêmia.
Como um centroavante aplicado, Moyseis Marques estava no lugar certo e na hora exata. Foi assim que o menino criado no subúrbio do Rio de Janeiro acabou escalado para a nova montagem de “Ópera do Malandro”, após o diretor João Falcão assistir a vídeos do sambista na internet. Mesmo sem conhecer o enredo da peça, acabou topando. “Depois que fui saber que tinha a ver com samba e que foi escrita pelo Chico. Ele é um dos meus super-heróis”, revela. Somente na véspera da estreia o músico que se tornava ator foi informado sobre seu papel: ele teria que encarnar Max Overseas, simplesmente o papel principal do espetáculo. A tarefa de interpretar o inescrupuloso contrabandista que não mede esforços para alcançar seus objetivos foi encarada com dedicação espartana. “Tive que fazer capoeira, dança de salão, pilates e ioga. Acabei perdendo 15 quilos”, revela.
Foi o primeiro golaço de quem já havia batido na trave algumas vezes, como ele mesmo costuma dizer. Seu nome já rolava em audições para musicais, mas a ele ainda não havia chegado nenhuma proposta que realmente valesse a pena dar um tempo em sua agenda musical na Lapa. Mal sabia que seu super-herói apareceria novamente.
Moyseis continua se apresentando nos bares da Lapa, atualmente um bairro que pouco lembra aquele de anos atrás. No último dia 19, uma terça-feira, lá estava o cantor e compositor em mais uma apresentação no bar Semente. Ao fim do show, um cliente manda a pergunta: “Você não vai me chamar para dar canja?”. A questão vinha de ninguém menos que seu super-herói acompanhado de herdeiros – Chico Buarque estava numa mesa com filhas, genros e neto. “Nunca imaginei que o maior de todos fosse aparecer ali para ver o que eu estava fazendo”, comenta o compositor sobre aquela noite – que, para abrilhantar ainda mais teve aparição surpresa no bar da cantora norte-americana Madeleine Peyroux, que havia se apresentado no Teatro Municipal horas antes.
O que parece somente uma canja de um dos maiores nomes da música brasileira reverberou em Moyseis como a confirmação de uma escolha artística.
Essa gana em fazer música de qualidade vem daquele início da década passada, quando o movimento artístico da Lapa, calcado no samba tradicional, choro e forró pé-de-serra, viu os holofotes da zona Sul virarem para sua direção. “As pessoas começaram a ir nos antiquários da Lapa para ver os artistas que tocavam nesses lugares. O bairro cresceu e eu fui junto. As coisas começaram a acontecer”, rememora Moyseis.
Com quatro discos lançados, o compositor andava um tanto angustiado. Em sua avaliação, estava pagando um preço caro por insistir em gravar suas próprias músicas. Seus três primeiros álbuns foram lançados por gravadoras que insistiam que ele requentasse temas famosos. Aos poucos foi conseguindo encaixar alguma música de sua fornada, mas no quarto disco – “Casual Solo”, lançado no ano passado –, sua lábia não surtiu mais efeito. “Ninguém quis fazer porque era formato voz e violão, e MPB e poesia andam um pouco fora de moda no Brasil”, reclama.
No teatro, continua a temporada, já em turnê há quase um ano. Para explicar a sensação de atuar, lembra novamente do futebol – ele é vascaíno. “No teatro, é necessário uma entrega grande, de corpo e alma, e também uma frieza. Funciona como quando o jogador bate uma falta no canto esquerdo do gol no momento em que o estádio inteiro está gritando. É preciso ter muita frieza”, compara.
Concentrado em seus objetivos, Moyseis continua sua estrada por vias mais elásticas. Roda boa parte do Brasil participando de rodas de samba, e nutre por BH um carinho peculiar. “Acho que fora do Rio, Belo Horizonte é a cidade que melhor assimilou meu trabalho”. Mesmo sem empresário e sem patrocínio, ele finalizou esta semana ensaios abertos que pretende gravar em DVD a ser lançado ainda em 2015. “Depois da visita do Chico, se eu tinha alguma dúvida em relação a essa escolha lá de trás, de fazer meu trabalho autoral, ela se exterminou”, conclui.