“Hoje, em todo o mundo, cerca de 1.500 compositores eruditos têm suas obras tocadas regularmente. E são nomes como Bach, Beethoven, Strauss. Não é como a música pop, que pode aparecer um fenômeno a qualquer momento”, pontua o respeitado maestro Roberto Tibiriçá, titular da cadeira nº 5 da Academia Brasileira de Música. Muito associada aos baluartes históricos e cultuada por um público exigente, a música clássica enfrenta barreiras seculares para amplificar compositores contemporâneos, fugir de amarras conservadoras e, quiçá, se abrir a novas experimentações.
Longe desse cenário convencional, Minas Gerais tem se revelado um bom celeiro de compositores. Tem também reverberado suas obras autorais pela cidade e levado peças para palcos da América Latina, dos Estados Unidos e da Europa.
É o caso de nomes como Rafael Martini, ligado à canção popular e às peças eruditas, e que recentemente recebeu o convite da Orquestra Sinfônica da Venezuela para registrar a sua “Suíte Onírica” em disco – a primeira peça clássica do belo-horizontino, que conta com texto de Makely Ka, veterano compositor popular, abordando a temática dos sonhos e suas simbologias. “Eu sinto que, mesmo com o conservadorismo de orquestras, a resistência de aceitar novas obras, os concursos e os raros convites abriram a chance para que novos compositores apareçam. Comigo, depois que a Orquestra Sinfônica interpretou minha peça, surgiu o interesse da Orquestra da Venezuela fazer”, diz o músico.
Uma das principais responsáveis por esse impulso animador é a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais. Desde a sua criação, em 2008, o grupo iniciou um movimento inédito de valorização da música erudita contemporânea. De lá para cá, a orquestra interpretou 49 peças de compositores contemporâneos – uma média de dez obras por ano. A maioria delas, 38, foram selecionadas no Festival Tinta Fresca, projeto que anualmente pinça obras inéditas de compositores estreantes. Apenas 11 composições são referentes às cobiçadas encomendas, destinadas a nomes reconhecidos como Marlos Nobre (PE), João Guilherme Ripper (MG) e André Mehmari (SP).
“Quando falamos de orquestras profissionais brasileiras que tenham condições artísticas, logísticas e orçamentárias de encarar um projeto como o Festival Tinta Fresca, estamos falando de três ou quatro, no máximo”, justifica o maestro Fábio Mechetti.
PERFIL. Foi graças a incentivos raros como esse que o compositor Sérgio Rodrigo, 33, nascido em Diamantina, se tornou o primeiro músico brasileiro aceito na Accademia de Santa Cecília, na Itália, onde mora há dois anos. A aceitação, após análise de partituras, currículo, gravações e portfólio, só aconteceu devido à sua experiência anterior, como professor na Fundação de Educação Artística (FEA) e, principalmente, pelo fato de ele ter sido premiado no Festival Tinta Fresca com a peça “Aura”, em 2010.
“Foi muito importante para mim ganhar o prêmio e ter tido alguma experiência com o universo sinfônico, uma vez que a escrita para orquestra é considerada um assunto fundamental no contexto da música de concerto. Na Itália, minha experiência tem sido a de uma imersão total no estudo e na prática composicional”, diz o mineiro, convidado para participar da Bienal de Veneza de 2015, com uma pequena peça para orquestra e coro infantil.
No mesmo caminho, o compositor Jônatas Reis, 40, acabou descoberto pelas orquestras e se mantém fiel ao ofício da composição há 13 anos. Desde o primeiro reconhecimento, ao vencer o Prêmio BDMG/Fundação Clóvis Salgado de Composição Sinfônica, em 2004, ele começou a receber convites. “Esse prêmio foi, sem dúvida, o elemento mais importante do início da minha carreira. Dois anos depois, a Orquestra Petrobras escolheu minha obra para ser executada na ‘Série Século XXI’, que apresentou apenas compositores brasileiros vivos”, lembra Jônatas.
No currículo, ele conta com 19 peças escritas, incluindo “Serra da Boa Esperança” – arranjo sinfônico para a canção de Lamartine Babo feita em homenagem ao pianista Nelson Freire e à sua cidade natal – e “Sambaião Exótico”, uma das peças mais arrojadas do compositor, produzida para a Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo em abordagem que mistura descaradamente o jazz com o baião. Atualmente, ele finaliza a obra “Os Jardins de Inhotim”, encomendada pelo museu de Brumadinho, e prevista para estrear em dezembro.
O compositor Cláudio Moller de Freitas, 37, hoje garante que “não fica sem trabalho” ao se dedicar prioritariamente à composição, além de dar aulas na Escola de Música da UFMG. Ele conta que, além de prêmios e oportunidades de mostrar a própria obra, o caminho ideal para o compositor sinfônico é aprender dentro da própria orquestra, antes de criar. “Tem compositor que não é intérprete, isso é compreensível, mas até para esses músicos eu recomendaria a vivência de ser membro de uma orquestra. Eu fui por 12 anos fagotista da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp). Eu tinha uma temporada de 120 concertos por ano e isso me dava muito contato com maestros, solistas, linguagens e formas criativas distintas, além de dominar o repertório clássico”, diz.
Atualmente, ele está escrevendo uma “Sinfonia Concertante” para Orquestra Axiom Brass, de Chicago (EUA), sua primeira encomenda internacional. E, mesmo com o trabalho de vento em poupa, ele se policia a diariamente escrever trechos eruditos. “Mesmo com todo o meu contato com músicos sinfônicos, minha primeira obra para o exterior só foi encomendada agora. É preciso saber que compor música erudita, além de quebrar muitos tabus, também é um ofício que leva tempo. Eu costumo compor todo dia, como um trabalhador comum. E sempre tenho material para quando surgem convites”, avalia Cláudio.
38 obras, das 52 composições executadas pela Orquestra Filarmônica nos últimos dez anos, são de novos compositores desconhecidos.
Evolução
Público comparece, mas é tabu
Oiliam Lanna, 63, professor da Escola de Música da UFMG, é um dos principais nomes da composição erudita em Minas Gerais. Para ele, que observa a evolução do gênero desde a década de 70, um fator deve ser levado em conta com cuidado e prioridade: o público. “Uma coisa é você interpretar o ‘Bolero’, de Ravel, ou ‘Carmina Burana’, melodias que todo mundo conhece. Outra é inserir duas peças pequenas, que sejam, desconhecidas. Você sente que gente que se interessa, é uma questão de cultura, algo que leva tempo para ser modificado”, avalia Oiliam.
Apesar disso, o professor também faz um contraponto. “Ao mesmo tempo, os programas da Orquestra Sinfônica, o repertório popular da Orquestra Ouro Preto interpretando Beatles, por exemplo, os pequenos programas gratuitos da Orquestra SesiMinas, tudo isso agrega público. Nos últimos tempos, a união entre erudito e o popular virou uma das principais estratégias para atiçar o público, que tem respondido”, completa.
Uma resposta expressa em números. Um dos principais programas gratuitos na cidade, o Sinfônica ao Meio-Dia, inaugurado há pouco mais de um ano, agrega uma média de mil pessoas no Grande Teatro do Palácio das Artes a cada semana – um dos trunfos é promover bate-papos educativos sobre obras sinfônicas consagradas. Já o projeto Sinfônica Pop, que une a orquestra com nomes da MPB como Luiz Melodia, Elba Ramalho e Zé Miguel Wisnik, tem a casa sempre cheia e levou 13.500 pessoas às apresentações entre 2015 e 2016. Até a Fundação de Educação Artística (FEA), munida de uma pequena sala para 200 pessoas, consegue levar entre 70 e cem pessoas a cada recital clássico.
A Orquestra Filarmônica, principal nome na abertura de novos compositores, estreou com apenas 750 assinaturas. Apesar do crescimento contínuo a cada ano, foi do ano passado para este ano que o grupo sinfônico sentiu o resultado do investimento em novos talentos, passando de 2.632 assinaturas para as atuais 3.320.
FOTO: DANIEL SILVA/DIVULGAÇÃO |
Sérgio Rodrigo é o primeiro brasileiro aceito na Accademia de Santa Cecília, famosa instituição italiana |
Cláudia Cimbleris
Pioneirismo de mulheres ainda é menos repercutido
Em 1982, a clarinetista alemã Sabine Meyer foi aprovada na Filarmônica de Berlim como a primeira mulher da história apta a integrar o grupo sinfônico. Mas seu talento não foi suficiente. Ela acabou rejeitada pelo protesto de 73 músicos, que não aceitaram dividir o palco com uma mulher. Mesmo que os tempos hoje sejam outros, o ranço da música erudita com o sexo feminino ainda é tabu.
Um dos principais nomes da composição clássica em Minas Gerais, a pianista e regente Cláudia Cimbleris é autora de centenas de obras para orquestras, quartetos de cordas e solistas, além de trilhas para o teatro, cinema e dança. Mas, segundo ela, em toda a sua carreira, apenas uma obra para orquestra foi produzida sob encomenda.
“Foi quando a Fiemg me procurou para elaborar a música-tema do III Encontro das Américas (Alca), interpretada pela Orquestra Sinfônica. Todas as outras eu sempre escrevi por conta, aguardando um interesse. Ninguém diz abertamente, mas claro que há um preconceito velado contra mulheres. Eu já tive situações de ensaiar uma obra autoral com orquestra e presenciar músico tocando errado para te testar. Isso é péssimo”, diz Cimbleris.
Ela e a filha, Maíra Cimbleris, foram as duas únicas mulheres com obras selecionadas pelo Festival Tinta Fresca, tendo concorrido na primeira edição, de 2008.
Com trânsito fácil entre o erudito e o popular, a musicista tem parcerias com nomes como Uakti, Toninho Horta, Milton Nascimento e Flávio Venturini, ao mesmo tempo em que assina obras como a elogiada trilha “Entre o Céu e As Serras”, composta para a Cia de Dança do Palácio das Artes. Além de tudo, ela ainda é considerada pioneira por ter inventado a “Tabela Cimbleris de Instrumentação”.
O método, inspirado na tabela periódica, permite que músicos escrevam simultaneamente para 36 instrumentos, exceto violão e piano, seja para grupos de choro, formações de samba ou jazzísticas ou grandes orquestras. Apesar disso, o material foi lançado em publicação física apenas pela editora italiana easyOpera, com 10 mil cópias distribuídas gratuitamente em Belo Horizonte, e sem grande repercussão no Brasil.
“Nós temos que nos preocupar com uma questão cultural. A minha filha (Maíra Cimbleris) fez o curso de composição há pouco tempo em uma turma só de homens. Se é tão complicado para obras de novos compositores homens serem aceitas por orquestras, imagine para as mulheres, que estão um século atrás deles na inserção da música erudita! É um duplo preconceito que temos que vencer e isso precisa ser debatido”, completa Cláudia.
FOTO: Lincon Zarbietti |
Cláudia desenvolveu método próprio de composição erudita |