Alguns dias após ficar sabendo do rompimento da barragem em Mariana, a jornalista paulistana Helena Wolfenson, filha do fotógrafo Bob Wolfenson, teve um sonho. “Sonhei com a lama, eu me afogando na lama”, lembra. Ela foi tomada pela tragédia “de um jeito estranho” e tentou lidar com isso fugindo um pouco do imaginário sensacionalista da cobertura midiática.
Pegou carona com uma conhecida que vinha trazer doações e veio para Mariana com uma câmera fotográfica, sem saber muito bem o que ia fazer. “Para mim, foi melhor que ficar imaginando de longe porque personifiquei aquela coisa e conheci as pessoas que estavam vivendo ali”, explica.
Em Mariana, ela conheceu a também paulista Aline Lata, que estava trabalhando como voluntária. Sem nunca terem se visto antes, as duas acabaram vivendo juntas aquela experiência, que elas querem transformar agora no documentário “Rastros de Lama”, com a ajuda de uma campanha de financiamento coletivo no site Catarse.
O projeto é um dentre muitos que querem recuperar das cinzas a memória do que foi destruído pela lama, eternizando-a como registro documental. “Já devem ter uns dez filmes sendo feitos lá. Mas 50 ainda seria pouco. Tem muita história para ser contada, de vários ângulos diferentes”, reflete o cineasta carioca Eduardo Ades, que começou a filmar seu documentário na semana passada (leia mais na página 3).
No caso de Helena e Aline, a ideia do documentário nasceu do encontro com Ricardo e Marlon, dois jovens de Bento Rodrigues que viviam sentados na frente da pousada onde elas estavam hospedadas. “Eles eram muito espertos, tinham um pensamento político sobre a tragédia e não paravam de falar coisas geniais. Só que não queriam dar entrevista”, conta Wolfenson.
Depois de muita insistência, elas convenceram os dois. Gravaram uma conversa e combinaram de ir com eles até a Bento arrasada, que estava fechada para o público, por meio de uma trilha alternativa. “Era a primeira vez que os dois voltavam para lá depois da lama. Foi uma coisa muito forte, ver a casa deles”, ela explica.
Ao mesmo tempo, Ricardo e Marlon tinham um certo humor e uma ingenuidade sobre aquilo tudo. “Eles falaram: ‘se a Samarco fodeu com a nossa vida, vamos jogar bola na lama!’. Tinha umas piadas, uma beleza, que foram fazendo tudo ter mais sentido, diferente de uma certa passividade que eu vinha vendo lá”, recorda Wolfenson.
Para a cineasta, essa resiliência e uma certa alegria do povo de Bento foi uma das grandes descobertas da experiência. “Tem uma força de viver nas pessoas, que acho que vem muito do catolicismo, da fé de que tudo vai ficar bem. Eu ouvia muito ‘Deus existe porque a lama não veio à noite, senão todo mundo tinha morrido’”, argumenta.
A maior surpresa, porém, foi se dar conta de que a tragédia já era antecipada por muitos. “Eles sabiam que a barragem estava para romper. Teve reuniões da comunidade com a Samarco”, revela.
Depois de três meses editando esse material, captado durante dez dias, Helena e Aline têm um teaser. Com o dinheiro da campanha no Catarse, que vai até o dia 17/3, elas pretendem voltar a Mariana e filmar por mais quatro semanas, revisitando Ricardo e Marlon e acompanhando a promessa da Samarco de construir uma nova Bento. O resultado será um curta, que elas querem usar para conseguir o apoio de algum edital, lei de incentivo ou parceiro para realizar um longa sobre a construção do novo distrito, “que pode durar um ano ou dez”.
“O que a gente quer é mostrar do ponto de vista do micro para o macro. Ir da memória da vivência dessas pessoas, que iam até a barragem, viam as rachaduras, trocavam ideias com os caras da Samarco, e agora não têm grana para comprar um band-aid ou uma cerveja com a ajuda que a empresa vem dando. O que a gente vê na mídia são nomes muito grandes, mas é uma história muito próxima. O cara da Samarco é o tio ou o pai de alguém”, descreve Wolfenson.
O que Wolfenson e Lata querem é passar por cima dessas construções midiáticas e encontrar as pessoas do outro lado da tragédia compartilhada no Facebook. “Lembro um dia em que o Marlon e o Ricardo estavam reclamando de como Mariana era uma cidade muito grande, com muito barulho e poluição, e fui me dando conta de como as proporções são outras, como existem outras vivências e outras formas de estar no mundo. Espero que o filme construa uma memória disso”, propõe Wolfenson.