Entre votações de grupos de críticos nos EUA e sindicatos hollywoodianos, “O.J. – Made in America” acumula, no momento, cerca de 38 prêmios como melhor documentário de 2016. Com um reconhecimento quase hors concours no circuito pré-Oscar, ele é – assim como “La La Land” na ficção – o grande favorito a levar o carequinha da categoria.
O único empecilho em seu caminho é um pequeno, mas importante, detalhe: ele tem oito horas de duração – o indicado mais longo da história do Oscar. E foi exibido em cinco episódios na ESPN. Se tem duração de minissérie, profundidade de uma minissérie e foi visto como minissérie... Faz sentido ele ganhar todos esses prêmios voltados, em teoria, para filmes?
É essa a pergunta que alguns críticos e artistas têm se feito nos EUA. “É um assunto delicado porque, ao mesmo tempo em que eu sou a favor da convergência das mídias e das plataformas – muita coisa boa tem sido feita, inclusive experimentando novos olhares da linguagem audiovisual –, casos escancarados como ‘O.J.’ incomodam por não darem chance para os reais filmes que estão concorrendo na categoria”, avalia Diego Benevides, crítico do jornal “Diário do Nordeste”.
Para ele, o documentário do diretor Ezra Edelman – que traça um paralelo entre a tragédia do jogador de futebol norte-americano O.J. Simpson desde a infância, passando pelo julgamento pela morte da ex-esposa Nicole Brown e seu namorado, até a prisão em Las Vegas em 2007, e a história da luta pelos direitos civis e contra a violência policial sofrida por negros no mesmo período – é uma minissérie feita para TV. E isso fica claro, não só no formato em que foi exibido, mas no maior aprofundamento da temática. “A televisão permite que a abordagem seja mais densa, enquanto o cinema preza pela precisão do que é importante ser abordado na duração de, geralmente, duas horas”, avalia.
Essa diferenciação é perfeitamente exemplificada na comparação com o principal concorrente de “O.J.” no Oscar: o documentário “A 13ª Emenda”, produzido pela Netflix. Ambos são excelentes trabalhos de investigação que dissecam o racismo latente inscrito no próprio DNA do sistema legal norte-americano. Mas enquanto o primeiro narra cerca de 50 anos em oito horas, o segundo condensa 150 em uma hora e 40 minutos.
Cada episódio de “O.J.” é um longa de uma hora e meia – intenso, denso e detalhista. É a velha comparação entre maçãs e laranjas. E a explicação do porquê ela está sendo feita são as regras do comitê de documentário da Academia. A produção de Edelman estreou em Sundance – um dos festivais que credenciam automaticamente, assim como o É Tudo Verdade no Brasil, seus selecionados a se inscreverem no Oscar da categoria.
A confusão só traz à tona um cenário que já é fato há alguns anos: documentários não são mais lançados no circuito de salas, e são vistos prioritariamente em festivais, TVs ou plataformas online. A questão é que, se “O.J.” está fazendo a Academia finalmente se render à Era de Ouro da TV, “Making a Murderer” também deveria ser elegível. É o que a Netflix, que deve perder com “A 13ª Emenda”, deve estar pensando. “Acredito que o essencial é uma reavaliação dos critérios da própria Academia onde seja preservada a questão da experiência do filme”, opina Benevides, sugerindo algo que a vitória de “O.J.” deve causar para 2018.
E o verdadeiro motivo dessa vitória não é o formato, nem a plataforma de exibição do documentário. Mas, sim o impulso que ele ganhou com o sucesso da minissérie “American Crime Story”, de Ryan Murphy – e os paralelos que ela traçou entre a história de O.J. e os EUA hoje.
São esses paralelos que explicam o fenômeno do resgate do escândalo do atleta 20 anos depois: eles não se resumem apenas à violência policial, mas principalmente às similaridades entre a promotora Marcia Clark e Hillary Clinton, duas mulheres sem carisma lutando com dados científicos contra um show midiático – da defesa do atleta e da pós-verdade de Donald Trump. E essa análise foi potencializada ainda pelo caráter complementar dos dois produtos: enquanto a ficção de Murphy focava mais no julgamento e nos personagens jurídicos envolvidos nele, o documentário de Edelman mistura um profundo estudo de personagem do próprio O.J. com uma maior contextualização sociopolítica que ajuda a entender o veredito.
“É uma minissérie necessária para os dias de hoje. Por mais que, como linguagem, não traga nada de novo, revisitar uma história sombria e colocar em diálogo com o mundo segregador e violento de hoje é a isca perfeita para quem valoriza a arte política. É um excelente trabalho de investigação, um mergulho profundo sobre questões importantes para nossa sociedade, ainda mais em tempos de intolerância política, social, religiosa e digital”, argumenta Benevides.
Onde assistir
“O.J.: Made in America” foi exibido na ESPN Brasil em 2016 e está disponível para os assinantes do canal no espn.com.br/watch.
“A 13ª Emenda” pode ser visto, por assinantes, no site da Netflix.
Cinema
História negra documentada
Em marco inédito, quatro dos cinco indicados ao Oscar de melhor documentário são dirigidos por realizadores negros
FOTO: Imovision / Divulgação |
Pensador. Autor de peças, romances e ensaios, Baldwin é a voz por trás de “Eu Não Sou Seu Negro” |
“O.J.: Made in America” e “A 13ª Emenda” não são os únicos documentários sobre a história dos negros nos EUA no Oscar deste ano. Num feito inédito, quatro dos concorrentes da categoria foram realizados por diretores negros – e três deles lidam diretamente com a conturbada história racial norte-americana.
E enquanto os dois favoritos estão disponíveis em plataformas online, o terceiro deles, “Eu Não Sou Seu Negro”, tem previsão de estreia para a próxima quinta em Belo Horizonte. O longa do diretor Raoul Peck resgata um manuscrito inacabado do aclamado escritor norte-americano James Baldwin, falecido em 1987, para fazer um ensaio poético e pessoal sobre a questão racial nos EUA da segunda metade do século XX.
Negro e homossexual, Baldwin pretendia registrar no livro “Remember this House” a vida e a morte de alguns dos principais líderes negros norte-americanos, como Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King. Com sua morte, porém, o material inacabado permaneceu nas mãos de seu agente, que o encaminhou a Peck.
O documentarista usa o manuscrito como o off de “Eu Não Sou Seu Negro”. A narração ficou a cargo de ninguém menos que Samuel L. Jackson, disparando com a verve aguerrida de Baldwin frases como “a história do negro nos EUA é a história dos EUA”.
Peck ainda intercala esse texto com trechos de entrevistas do escritor nova-iorquino, dono de uma eloquência e uma inteligência admiráveis. “Se qualquer homem branco no mundo diz ‘me dê liberdade ou morte’, a sociedade branca inteira aplaude. Quando um homem negro diz exatamente a mesma coisa, ele é julgado e tratado como um criminoso, e todo o possível é feito para que ele sirva de exemplo e que nunca mais haja outro como ele”, Baldwin afirmou na TV norte-americana.
Para o crítico Diego Benevides, é difícil definir se a indicação de três documentários tão afirmativos e politizados juntos, no mesmo ano, é pura coincidência, resposta à polêmica do #OscarsSoWhite ou reflexo da ascensão da narrativa negra durante os oito anos da Era Obama. O que ele acredita ser inegável é a importância da visibilidade que essas produções ganham com a máquina publicitária do Oscar. “É importantíssimo que as questões negras, feministas, trans (com atores trans) etc., tenham espaço no cinema e na cultura em geral. As pessoas precisam olhar para essas histórias e precisam discuti-las. E, querendo ou não, o Oscar é a vitrine do mercado, ainda que ignore tanta coisa boa que fica de fora dele”, avalia.
Magia Disney
O quarto negro indicado a melhor documentário em 2017 é Roger Ross Williams. Vencedor do Oscar de curta documentário em 2010, com “Music by Prudence”, ele foi promovido à categoria de longas com “Life, Animated”. O filme conta a história de uma família, branca, que encontra uma forma de se comunicar com o filho autista por meio das animações da Disney. O longa venceu o prêmio de melhor direção no Festival de Sundance em 2016.