Ícone da MTV nos anos 90, o apresentador e líder do Ratos de Porão tem muita história para contar na autobiografia “Viva La Vida Tosca” (Darkside). Nesta entrevista, João Gordo, 52, fala sobre os espancamentos sofridos pelo pai na infância, os punks de direita dos anos 80 que ele sempre repudiou, a fama no YouTube, sua vida de vegano, relação com drogas e conservadorismo no Brasil
Você certamente tem muitas histórias para contar, de Dado Dolabella a Kurt Cobain. Por que decidiu que agora era a hora de reunir suas melhores aventuras, tretas e realizações numa autobiografia?
É, realmente nem tem tudo ali, porque é muita história maluca para contar, não dá – e Kurt, sim, é uma história, Dado é um imbecil, apenas. Tirei várias coisas do armário para escrever. E, olha, quase 98% do que está ali é verdade, tá ligado? Só uns 2% é que dei uma exageradinha, alguma coisa assim de leve, porque é do meu estilo mesmo. Eu só pensei assim: tô vivo ainda, tem um tanto de história. Vamos publicar, então.
Você conhece o André Barcinski, que co-assina sua autobiografia, há bastante tempo. Como foi o processo de dividir suas memórias com ele?
Eu conheço o Barcinski desde a primeira geração dos Ratos de Porão. Ele trouxe o Ratos para tocar no Rio de Janeiro. Contei várias histórias e ele sempre rachou o bico de tanto rir. Foram dois anos de entrevistas, várias comigo e algumas com minha mãe, alguns amigos, gente que trabalhou comigo na MTV. O Barcinski decupava as fitas das gravações, mandava para mim, e eu ia mudando, corrigia do meu jeito, mudei o nome de algumas pessoas para não criar caso. Recuperei fotos da infância em Angatuba (cidade natal do músico, no interior de São Paulo). A única parte tensa foi a fase da infância, os espancamento do meu pai, me deu até uma deprê lembrar daquele militar fodido de merda.
Pela sua biografia, a gente tem acesso a um João Gordo nerd, culto, que ficava brincando de Forte Apache e estudando a enciclopédia em casa, não apenas o gordo caricato da MTV. Concorda?
É, eu não sei se chego a ser um cara culto, porque eu parei de estudar em 1982, não terminei o colegial. O que eu sei é conhecimentos gerais, o resto a vida me ensinou nas minhas viagens. Viajar abre a cabeça da gente para um monte de coisa. O começo do meu livro, a minha infância, é o século passado. Não tinha computador, só TV preto e branco, enciclopédia e jogo de xadrez. Eu preferia ler. Às vezes um amigo me chamava para jogar um pingue pongue, aquela merda. Hoje, acho que a gente evoluiu. O nerd de hoje em dia não é só mais o gordo. É o negro, o árabe, o aleijado, todo mundo pode ser nerd.
Você se define como o “exemplo do que não fazer”. Se arrepende de algum excesso?
Eu me diverti muito, mais do que todo mundo. É lógico que, algumas coisas, putz, é foda. Eu já fui um bêbado caído, um drogado fodido mesmo. Mas eu caí de cabeça no hardcore, no punk e no metal, pude viver a minha vida e foquei em ter uma diversão remunerada. Eu sempre gostei do que faço, por isso ainda estou em cima do palco, há 35 anos sem parar.
Você não esconde trechos densos da sua vida, como as drogas. Você diz que nunca foi um cara de abstinência, toxicômano. Como vê o Brasil no debate das drogas?
A cannabis sativa é a planta mais perfeita do mundo, na minha opinião. É medicina e religião. E você demoniza a planta só por causa de americanos racistas que odiavam mexicanos que a usavam. Com esse retrocesso monstro que a gente vive no Brasil, nunca vai haver um debate, vai só criminalizar mais, infelizmente.
Como pai de dois pré-adolescentes, como seus filhos enxergam esse lado de sua vida, como é sua orientação para eles sobre drogas?
Os dois já sabiam que o pai deles nunca foi flor que se cheire. O livro é de superação, porque, apesar de tudo, sobrevivi. Mas, papai de hoje não é mais o mesmo de antes de eles nascerem. Meu pai era um grande merda, desgraçado, um louco que só me espancava. Aqui em casa, meus filhos sabem que o pai é louco, mas eu sou um porra louca do amor, não herdei nenhuma idiotice violenta do meu pai. De amor, meus filhos entendem tudo.
No início da década de 1980, você menciona no livro que o movimento punk era bastante machista, homofóbico, “tudo o que não presta”. E a descrição atual do Facebook do Ratos de Porão diz que a banda está “desde 1981 traindo o pseudomovimento de alguns idiotas”. Houve uma mudança ideológica no punk hoje?
Cara, sabe que eu acho muito louco os punks da minha época: a maioria era conservador, tirando os Garotos Podres, com músicas de esquerda, o resto era tudo direita. Na cabeça deles, de 22 anos daquela época, não importava qual governo, o negócio era ser antigoverno, não importa se a oposição era mais podre do que o que o governo que estava lá. Enquanto isso, em 2006, o Ratos de Porão já tinha música falando do Lula e do PT (“de CPI ninguém tem medo/ elogio da mediocridade/ do PT e seus segredos”, diz a letra de “Otário Involuntário”). Nossa cabeça evoluiu.
Você tem posição política definida?
Eu sou um punk anarquista. Sei que o anarquismo é uma utopia, mas o punk me ensinou a pensar no bem para todos, quero direitos iguais para todos. Por mim, que todo mundo seja rico. O grande problema que eu vejo hoje é a raiva que o brasileiro acumulou de gente inocente, oprimida. Agora, por causa do Facebook, o brasileiro é um verdadeiro homofóbico, racista e filho da puta. Essa geração “bolsominion” vai crescer, vai vir muito mais merda depois de 2018.
Além de uma biografia, você já pensou em levar suas melhores histórias para o cinema? Quem poderia fazer o papel de João Gordo?
Porra, cara, eu até ia achar divertido. Mas, para fazer o João Gordo, teria que ser o Jack Black, tá ligado? Aí, eu topava.
Como você se tornou vegano?
Eu sou vegetariano há 14 anos, é uma influência que tem até na minha banda: no Ratos, o Jão é vegano também. Fiz a opção, não foi por saúde e essas caralhadas, não, foi pelos bichos. No meu modo de pensar, não preciso dessa carne de bicho maltratada. Mas tem muito vegano xiita, eu não sou assim, não.
O “Panelaço”, seu programa no Youtube de entrevistas e receitas veganas, te traz um retorno diferente da época em que você era apresentador de TV?
Eu tomei noção recentemente do tanto de gente que eu influencio, cara. Hoje, eu trabalho quando eu quero e faço o que eu quiser. Quando saio na rua, sou mais famoso agora do que quando eu era da MTV. As pessoas chegam perto de mim e tem um assédio, claro, mas cheio de carinho, admiração. Acabou aquele João Gordo tosco da MTV, que não toma banho e só fala palavrão. Hoje, as pessoas normais não têm mais essa visão de mim. Só os “coxa”, a “Veja”, a Rede Globo, esse bando de lixo, eles ainda me olham dessa forma escrota que não sou.
Você tem vontade de fazer TV novamente? Ou não aceitaria nenhum convite?
Pagando bem e se eu me sentir à vontade e não ficar constrangido de fazer o bagulho, eu vou. No “Legendários” (programa da Record) eu ficava constrangido e percebi que só aceitei porque eu ganhava três vezes mais do que na MTV. Mas entendi que não adianta você receber um puta salário se for para você passar vergonha. Eu prefiro fazer o que eu gosto. É o que tenho feito desde que sai da TV. Voltei ao Canal Brasil para um talk show neste ano, mas porque era do meu jeito. Eu não me submeto mais. Por grana nenhuma.