O ato de fazer releituras de ícones da música pode ser classificado como “mexer em vespeiro”. E é em um vespeiro gigante chamado Nelson Cavaquinho que o cantor paulistano Romulo Fróes se aventura para lançar seu novo trabalho. Intitulado “Rei Vadio”, é seu primeiro álbum exclusivamente como intérprete. O disco cria uma simbiose com a obra do compositor carioca e coloca toda uma roupa nova em 14 canções que aproximam sentimentos musicais tão variados de verdadeiros ícones.
Nelson Cavaquinho é um dos mais importantes compositores do samba e da música brasileira e vestir suas músicas com timbres, ruídos e sons que nos remetam ao asfalto, ao contemporâneo, transforma esse sambista mangueirense em uma entidade viva no século XXI. Um ser que trafega pelo Arouche, Bexiga ou pelo baixo centro de São Paulo ou Belo Horizonte sem nunca ter deixado a Lapa ou a sua Mangueira.
“Com nenhum outro artista dos muitos que me influenciam tenho uma identificação tão profunda. As canções de Nelson Cavaquinho representam um lugar mais rebaixado, menos luminoso, de um mundo menos eufórico e mais consciente de seus problemas e obstáculos”, diz Romulo.
É possível que os puristas fiquem insatisfeitos com o disco. Perguntado se essa aceitação o preocupa, o cantor é sucinto: “Absolutamente não!”. E, convenhamos, o mundo seria um tanto quanto menos criativo se as decisões estéticas ficassem sempre nas mãos dos puristas e conservadores. Sempre é necessário pra evolução da música que transgressões aconteçam. E certamente o disco novo de Fróes transgride certas convenções, principalmente no terreno do samba, tão refratário a transgressões.
Pode-se ver isso ao analisar a história do gênero. São poucos discos de 1917, ano da gravação de “Pelo Telefone”, considerado o primeiro samba gravado, até 2016, que ousaram romper com as tradições do ritmo brasileiro. Um “Nervos de Aço” do Paulinho da Viola aqui, algumas composições de João Bosco ali, Jorge Ben até 1976, um Radamés Gnattali e um maestro Gaya acolá e mais algumas coisas além disso, mas nada muito numeroso.
Romulo transforma as músicas de Nelson Cavaquinho em arranjos que respiram a modernidade musical. Característica essa já absorvida por quem conhece seus cinco discos anteriores. Ou os três discos do Passo Torto, que também trazem com muita força e originalidade essa desconstrução de conceitos da MPB. Na verdade, eles estão é inventando novos conceitos.
Elementos do mais puro free jazz se misturam com cuíca. O no wave e o pós punk entram de cabeça nos tamborins e versos tão marcantes do compositor frequentador assíduo dos bares cariocas. Em nenhum momento soa forçado. Em nenhum momento soa como se não fosse a coisa mais natural do mundo.
E essa impressão não é fútil, é uma busca. “Primeiro é preciso dizer que não se trata de uma desconstrução vazia, para gerar falsas polêmicas. É, sim, um desejo profundo e verdadeiro de mexer com a canção brasileira”, explica Romulo. É um trabalho pensado e desenvolvido pela turma. Sobre onde tudo isso pode chegar, o músico afirma: “Não temos a menor ideia de onde isso chegará, até porque não traçamos um objetivo final, a não ser o da renovação constante”.
É a originalidade que se destaca. E estamos falando de dois artistas com boa dose dela. Nelson, que tinha um jeito único de tocar, usando o polegar e o indicador para “empurrar” as cordas do seu violão. E Romulo, com a sua necessidade artística de apresentar o novo.
“Quando me enfiei nessa enrascada, eu tinha duas premissas claras para mim: não iria nunca tratar a obra dele com demasiado respeito, sem tentar buscar novas nuances para o que ele havia feito, mas também não queria cair na atualização vazia de, por exemplo, montar um power trio de rock e tocar suas canções nesse formato” afirma. “Toda a deconstrução e experimentalismo que meu disco possa ter já estão na voz e no violão do Nelson. Nada pode ser mais estranho e radical que o violão e a voz do Nelson. O que tentei fazer – e modestamente acho que consegui – foi traduzir esse estranhamento para os dias de hoje, para a linguagem que tenho desenvolvido no meu trabalho”, diz Romulo.
Repertório
“Rei Vadio”
“Pode Sorrir”
“ Não Me Olhes Assim (Aceito o Teu Adeus)”
“Notícia”
“Erva Daninha”
“Eu e as Flores”
“Cinza”
“Luto”
“Caminhando”
“Vou Partir”
“Rei Vadio”
“História de um Valente”
“Mulher Sem Alma”
“Luz Negra”
“Juízo Final”