Anna Muylaert queria fazer um filme “mais solto, mais leve, mais barato”. E nem era como resposta à rigidez narrativa e ao sucesso estupendo de “Que Horas Ela Volta?”. A vontade surgiu antes, em 2011, quando ela fez parte do júri no Festival de Brasília, e o mineiro Sérgio Borges saiu vencedor com “O Céu sobre os Ombros”.
“Vi que tinha uma galera jovem fazendo algo bem mais leve, com um resultado bacana, e decidi fazer um filme de baixo orçamento, sair da zona de conforto, trabalhar sem elenco de famosos”, descreve.
Nascia ali a forma de “Mãe Só Há Uma”, que estreia hoje. Já o conteúdo veio da fascinação da diretora pelo caso real do menino Pedrinho, sequestrado ainda na maternidade, que comoveu o país em 2002. Só que Muylaert não desejava meramente reproduzir aquela história. Ela queria encontrar algo que representasse na tela a crise de identidade detonada na vida daquele menino quando a verdade sobre sua origem foi revelada.
E esse algo só se apresentou após as filmagens de “Que Horas?”. Com os filhos já crescidos, a cineasta conheceu um monte de gente jovem na equipe e voltou a sair à noite. “E vi uma composição de gênero completamente diversa da minha época, menino de barba e com vestido, menina beijando menina sem ser gay, e achei uma metáfora interessante para discutir essa questão”, explica.
Foi quando nasceu Pierre (Naomi Nero). Jovem da periferia paulistana, ele tem a vida virada do avesso quando descobre que foi sequestrado pela mãe, Araci (Daniela Nefussi), ainda na maternidade. E é obrigado a ir morar com os pais biológicos, Glória (a mesma Nefussi) e Matheus (Matheus Nachtergaele), típico casal da classe média conservadora paulista que insiste em chamá-lo de Felipe.
No meio disso tudo, Pierre – que, na primeira cena, transa com uma garota no banheiro de uma balada vestido de cinta-liga e tanguinha preta – ainda está descobrindo se gosta de menina ou menino, ou de menina e menino; se é menino ou menina, ou um menino que se veste de menina. Talvez ele seja isso tudo. E pressionado a ser algo que não é, ele usa essa revolução interna para se defender.
Qualquer semelhança não é mera coincidência. Pierre é mais um corpo estranho ocupando um espaço meio a contragosto, e usando a revolução de sua geração para se afirmar ali. “A Jéssica influenciou a ousadia dele. Antes, no roteiro, ele sucumbia”, confessa Muylaert, sobre a protagonista de “Que Horas Ela Volta?”.
Além disso, “Mãe Só Há Uma” é mais uma história de maternidades cruzadas e de dois universos opostos que se chocam na tentativa de coexistência – o que é ordem para seus pais é o caos para Pierre, e vice-versa – em mais um reflexo da divisão que dilacera o país hoje. “Não faço grandes filmes, nem grandes produções, mas acabo falando da sociedade por meio da família, que é a primeira instância do Estado”, avalia.
As semelhanças com o longa anterior, no entanto, param aí. “Mãe” é, essencialmente, um filme sobre identidade – o que é ser mãe, homem, mulher, e o papel dos outros e da família nisso. E, narrativamente, está no extremo oposto dos enquadramentos fixos e da linguagem cuidadosamente planejada de “Que Horas Ela Volta?”. Apesar da fotografia continuar nas mãos de Barbara Alvarez, a câmera é solta, e Muylaert admite que 50% das cenas foi improvisada pelo elenco. “Eles sabiam que deviam ir de A a B, mas o modo como fazem isso é deles”, explica.
Nesse sentido, encontrar Naomi foi o grande desafio e o grande achado da produção. Sobrinho do ator Alexandre Nero, o jovem apareceu depois que a primeira escolha de Muylaert deu para trás e foi estudar matemática, e trouxe com ele na bagagem a história de sua irmã, Nicole, que é transexual.
“Eu não sabia disso antes. Escolhi o Naomi pelo tipo físico andrógino e a naturalidade dele. O Pierre é um personagem que vai implodindo ao longo do filme e, quando ele explode, falando de aceitação, todas as falas vieram do Naomi, de algo que ele tenha vivido, imagino”, conta a cineasta.
Antes disso, Naomi Nero já brilha na primeira cena em que o protagonista reage, num momento que é pura Jéssica, mandando o grande “foda-se” que você sempre quis dar ao ministério masculino, branco e heterossexual do governo ilegítimo e não sabia como. “É um das melhores cenas que já fiz na vida”, revela a diretora.
Essa narrativa de uma metamorfose interrompida por um erro, que dá origem a vários outros erros, tentando aprisionar o futuro de Pierre na caretice conservadora do apartamento dos pais, possibilita uma leitura bastante política do longa, algo que Muylaert não planejou, mas não renega. “Não foi a intenção porque ainda não tinha o golpe no ano passado. Mas é fato que temos uma mãe oficial agora que não é a mãe de verdade”, comenta.
E, apesar de estar de férias após dois longas seguidos, a cineasta já está se preparando para tocar em mais feridas delicadas. No próximo roteiro, ela quer explorar o machismo de que foi vítima durante a trajetória de “Que Horas Ela Volta?”. “Quando o filme passou a valer dinheiro e poder, passei a levar rasteiras e cotoveladas que não esperava mais levar na vida. Foi bem surpreendente”, provoca.
Sobre o golpe
De férias, pero no mucho, Muylaert está trabalhando no roteiro de um documentário sobre o afastamento de Dilma Rousseff. A direção será de Lô Politi (“Jonas”). Recém-convidada para a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, a cineasta também espera usar o tempo livre para ver os screeners que receberá no fim do ano. “Eles mandam documentário, mandam tudo”, celebra a cinéfila.