Repercussão

Zé do Caixão, ou melhor, Mojica: um mestre que vai fazer falta

Críticos e pesquisadores mineiros destacam o pioneirismo, as ousadias e o singular legado de José Mojica Marins

Por Carlos Andrei Siquara, Bruno Mateus e Raphael Vidigal
Publicado em 19 de fevereiro de 2020 | 21:07
 
 
 
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Um dia antes de receber a notícia da morte de José Mojica Marins, ou seja, na noite de terça (18), o crítico de cinema Marcelo Miranda havia realizado uma palestra no MIS Cine Santa Tereza justamente sobre o longa “À Meia-Noite Levarei Sua Alma”, o primeiro que mostrou o temido e odioso personagem Zé do Caixão, de unhas tão longas e encurvadas quanto tenebrosas. Em 2015, aliás, o filme entrou na lista das cem melhores produções nacionais de todos os tempos, feita pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), e da qual também constava “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha (do mesmo ano, 1964).

Miranda aproveita para fazer uma comparação entre ambos. “São dois instantâneos de um Brasil às portas de um golpe militar que brutaliza a sociedade. Enquanto o de Glauber tenta olhar para o povo com uma certa esperança e utopia, Mojica filma o epílogo de um país violento, com ideais autoritários e uma cultura fincada na opressão ao outro”. Já o aparecimento de Mojica na cena cinematográfica do país, o crítico define como “um verdadeiro estouro”, por chamar a atenção tanto do público quanto da intelectualidade.

“Ele explode a cabeça dos intelectuais, porque faz um tipo de filme que eles sequer imaginavam que poderia ser feito. O Mojica inventou, deliberadamente, o gênero de terror no Brasil, com pouquíssimos recursos e muita inventividade, e aí está o sujeito de vanguarda. O Glauber (Rocha) era apaixonado por ele. Outros cineastas, como Rogério Sganzerla, Carlão Reichenbach e Luís Sérgio Person também ficaram fissurados nele, que se tornou uma espécie de guru para todos”, informa o crítico de cinema e pesquisador.

Inovação

Gestor e programador do Cine Humberto Mauro, localizado na Fundação Clóvis Salgado, Bruno Hilário observa que Mojica deixa sua marca no cinema nacional por ter sido “extremamente inovador” ao abordar os temas e do ponto de vista da linguagem.

Para ele, por trás de um aparente amadorismo, havia, no cinema de Mojica, unidade e coerência estética. “Os filmes eram muito sujos, crus, pouco compreendidos pela crítica dos grandes meios, mas ele propôs tendências estilísticas e temáticas que não eram necessariamente ligadas a uma tradição brasileira de narrativa”, declara.

Hilário frisa que, durante a ditadura militar, Mojica usou seu cinema para fazer uma grande metáfora do povo brasileiro. “Ali tem uma alegoria do nosso subdesenvolvimento, onde o horror é uma palavra-chave para entendermos determinados comportamentos de personagens naquele momento trágico da nossa história que insiste em nos perseguir”, completa.

Em 1977, no longa “Abismu”, de Rogério Sganzerla, Mojica fez uma participação como o Doutor Pierson, responsável por declamar “O Elogio à Boçalidade”. “O cinema do Mojica era desconfortável, pois lidava com a violência e a morte, mas, ao mesmo tempo, empolgante, por abrir muitas possibilidades. Ele tinha uma abordagem sem recalques, um certo descompromisso com lógicas narrativas. Não se preocupava com a qualidade dos atores, o que interessava era o impacto emocional e brutal da cena”, resume Miranda, destacando o pouco conhecido filme “Perversão” (1978) como “tristemente atual”. “Com ele, Mojica conseguiu detectar o quanto a burguesia brasileira está fundada no ódio ao outro”, pontua.

Maldição

O diretor e produtor cinematográfico Sávio Leite ressalta que, além de pioneiro, Mojica foi um exemplo para os realizadores brasileiros também pela forma como contornava os obstáculos que volta e meia surgiam para, enfim, botar de pé suas produções. “Podemos dizer que ele criou o cinema de gênero no Brasil. E, veja, não fez escola de cinema, aprendeu tudo sozinho. Um exemplo de que é possível fazer filmes sem grandes aparatos”, ressalta Leite.

Na opinião de Hilário, Mojica tem o mérito de ter criado um personagem que ficou tatuado no imaginário coletivo de toda uma geração. “Ele instaurou um inferno nos meios de comunicação e no cinema brasileiro de forma geral”, comenta.

O gestor recorda que, em 2013, o Cine Humberto Mauro realizou uma mostra retrospectiva sobre o diretor Alfred Hitchcock, e Mojica foi um dos convidados para um bate-papo sobre a obra do britânico.

“Lembro que muita gente estava esperando para vê-lo, ele teve até dificuldade para entrar na sala. Ele tinha um apelo enorme de público, e há uma geração que entende o lastro da obra dele”, diz o gestor, que celebra a presença de Mojica, na pele de Zé do Caixão, em Belo Horizonte: “O Cine Humberto Mauro tem a cara dele. Por sorte, ele ‘amaldiçoou’ o cinema”, diverte-se.

Confira, a seguir, mais repercussões da morte de Mojica

“Perdemos uma figura emblemática. Artista singular, com uma obra sólida construída com muito esforço e dedicação num país que não tinha nada no gênero antes dele. Salve José Mojica Marins, que você vá por um caminho de luz!”
Frejat, cantor e compositor

“Descanse em paz mas volte sempre, José Mojica Marins, criador do Zé do Caixão, um dos maiores personagens cinematográficos brasileiros.”
Amir Labaki, cineasta e fundador do festival de cinema É Tudo Verdade

“Obrigado pelas décadas de sustos, e sacrilégio, Coffin' Joe (como Zé do Caixão é conhecido no exterior). Você foi uma lenda.”
Ted Geoghegan, diretor de filmes de terror norte-americano

“O homem que fez da morte a sua arte a encontrou nesta 4ª. Mestre do cinema de terror, José Mojica Marins mudou o cinema nacional e se tornou referência do gênero aqui e no exterior. Que descanse em paz... se assim o quiser.”
Nota da Globo Filmes

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