São Paulo. Em maio de 1971, o arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016), foi recebido pelo general Emílio Garrastazu Médici. O cardeal havia pedido uma audiência com Médici para reclamar das torturas aplicadas contra muitos dos opositores do regime militar. E foi o que dom Paulo fez. “Nós não vamos arredar um milímetro”, respondeu o general ao pedido. É o próprio líder católico quem conta esse episódio no documentário “Coragem! As Muitas Vidas do Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns”, que entra em cartaz um ano após sua morte.
Dois anos depois desse encontro marcado pela tensão, Médici assinou decreto determinando o fechamento da rádio 9 de Julho, pertencente à Arquidiocese de São Paulo. A medida não foi capaz de intimidar dom Paulo. Pelo contrário, ele intensificou as críticas à brutalidade do regime.
Em 1975, em ato ecumênico na Catedral da Sé, o cardeal foi o primeiro a dizer publicamente que o jornalista Vladimir Herzog havia sido assassinado pelos militares, e não cometido suicídio por enforcamento, conforme versão apresentada pelos agentes.
Aliás, as cenas da multidão dentro e fora da catedral estão entre as mais comoventes do documentário dirigido pelo jornalista Ricardo Carvalho, autor de dois livros sobre dom Paulo, entre eles a biografia “O Cardeal da Resistência”.
Carvalho conheceu o arcebispo nos anos 70, quando era repórter da “Folha de S.Paulo”, e foi incumbido pelo jornal de acompanhar a arquidiocese. Entre os entrevistados por Carvalho, o teólogo e escritor Leonardo Boff é quem dá os depoimentos mais precisos sobre dom Paulo. Nas palavras de Boff, o cardeal era “simultaneamente terno e vigoroso”.
A amigos e conhecidos, o arcebispo costumava recomendar “coragem”, daí o nome do filme. Faltou ao diretor justamente destemor para escapar das convenções. Como obra de cinema, que requer alguma originalidade narrativa, o documentário decepciona. No entanto, na condição de registro histórico a respeito de um grande brasileiro da segunda metade do século 20, o filme é indispensável. A defesa contundente da democracia e do diálogo, praticada por dom Paulo, faz muita falta ao Brasil dos dias de hoje.