Necessidade constante de bem-estar adoece as pessoas

Seguir a ditadura da felicidade de ter casa, sucesso profissional e curtidas nega a importância das frustrações


Publicado em 19 de fevereiro de 2017 | 03:00
 
 
 
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A busca pela felicidade é algo que acompanha o ser humano desde sempre, mas essa ambição parece ter sido simplificada a ponto de ser preciso seguir quase uma receita de bolo. Basta casar, ter filhos, um bom emprego, um corpo “bonito” e viajar, sem esquecer de deixar tudo registrado e com muitas curtidas nas redes sociais. Por outro lado, sem espaço para a infelicidade, a obrigatoriedade do bem-estar deixou os indivíduos culpados por não estarem o tempo todo de bem com a vida.

O que muita gente procura hoje são estados eufóricos, explica o filósofo e escritor Mário Sérgio Cortella, em um vídeo na internet. “A posse de bens materiais, de fato, produz uma felicidade rasa, momentânea, episódica, veloz, e aí a pessoa entra num processo obsessivo de imaginar que a ‘consumolatria’ – a posse contínua de coisas – é que vai deixá-la feliz, e isso, sim, leva a um estado de ansiedade constante”, diz.

Esse aparato de comandos que nos ordenam o tempo todo a viver melhor acaba por tentar negar e afastar sentimentos importantes para vida, como a angústia e a tristeza. “As pessoas não aceitam que você esteja triste. E as redes sociais pioram isso. Lá, todo mundo quer mostrar que está bem, que é feliz com tudo e que nada o afeta”, conta a estudante Livian Vieira, 16.

É como se estar triste equivalesse a adoecer, segundo a terapeuta do Instituto Luz Diamante Laura Conde Baeta. Ela trabalha desenvolvendo o despertar da consciência nas pessoas e diz que muitos pacientes têm medo de mostrar o que estão sentindo, com medo de não serem aceitos. “Estar triste é ruim e não pode, mas, na verdade, esse ‘não pode’ já é tristeza”, observa.

Ela conta que atendeu uma jovem de 21 anos com síndrome de Down que estava reclamando que não era feliz por conta de sua condição. “As pessoas acham que ser feliz é ter isso, fazer aquilo, que a felicidade está condicionada. E, no caso dela, ela não poderia ser feliz por causa da síndrome. Tive que ir mostrando que não quer dizer que todo mundo que, para ela, era normal também era feliz”, relata.
A própria tristeza tem sua importância, diz a terapeuta. “Deixar de vivê-la é negar a condição humana. No dia em que meu pai morreu, eu estava dirigindo sabendo que naquele momento eu estava triste, mas percebendo que, dentro de mim, minha felicidade não havia deixado de existir”, diz.

Culpa. No ensaio “The Happiness Industry” (“A Indústria da Felicidade”), o acadêmico britânico William Davies constatou que a situação se agravou a partir do momento em que se formou em torno dessa “imposição social” toda uma cadeia econômica para mensurar esse estado de plenitude tão almejado por todos.

O problema é que essa busca incessante gera a culpabilização do indivíduo por não se sentir completamente feliz. Com isso, nos consultórios se multiplicam os pacientes insatisfeitos por não alcançarem esse padrão, como se fosse a “chave” para a felicidade. Segundo a psicoterapeuta Solange Rolla, muitos já chegam para serem atendidos com quadros de adoecimento, como depressão e crises de ansiedade.

“O que essa cultura faz é um ‘estupro’ na nossa consciência. Querer que a gente encontre um ideal que está longe de ser real. Às vezes, a pessoa está angustiada porque não tem um ‘par perfeito’, não tem a saúde maravilhosa, não está realizada profissionalmente, gerando uma frustração que adoece”, afirma.

Para trazer um pouco de leveza, a especialista tenta brincar com esses pacientes. “Costumo dizer que, se essa pessoa quer um mundo ideal, sinto muito, mas ela errou de planeta, porque o nosso é o da dualidade, desde as coisas mais concretas: dia e noite, quente e frio, doce e amargo, nascimento e morte. Ou seja, eu só sei o que é felicidade e bem-estar por saber também o que não é”, explica.

Expectativas. A filosofia, segundo Cortella, tem uma fórmula antiga que serve até de anedota: “Felicidade é igual realidade menos expectativas”. E complementa: “A felicidade é uma vibração intensa que você sente, uma vitalidade exuberante, mas ela não é um estado contínuo. São instantes, episódios em que você sente a vida te levar ao máximo. Vem daquilo que é essencial, amizade, lealdade, fraternidade, sexualidade e religiosidade”, ressalta.


Constelação familiar ajuda a superar o passado

FOTO: Leo Fontes
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Terapia. Na constelação familiar, participantes encenam um teatro com personagens da história de quem procura a terapia

Para lidar com os quadros de adoecimento e de resgate da consciência, a psicoterapeuta Solange Rolla trabalha com a técnica de constelação familiar. A metodologia utiliza imagens simbólicas da pessoa e de seus familiares, seja com encenações interpretadas por outras pessoas, quando feita em grupo, ou com bonecos e até almofadas, quando feita individualmente. Isso é uma forma de lidar com problemas e angústias.

“Às vezes, a pessoa está com o luto interrompido, tem cinco anos que o filho morreu, e ela não aceita a morte. Durante a constelação familiar, usando esses instrumentos, eu faço como se fosse uma trabalho de regressão, em que levo aquela mãe ao passado para ela poder se despedir do filho, falar da saudade e lhe dar um abraço. A não aceitação da morte só adoece”, explica.

Segundo a terapeuta, compulsões para ter um corpo “perfeito”, quadros de obesidade e doenças vêm sempre de situações em que a pessoa não está querendo olhar para a realidade dual em que vive. “A constelação não vai garantir que daqui pra frente a vida vai ser de pura felicidade, mas me prepara para não atravessar os momentos difíceis desprevenida”, afirma.

O método terapêutico trabalha com três conceitos fundamentais – hierarquia, equilíbrio e pertinência –, para que a pessoa seja levada a conseguir sustentar seu eixo vertical. “O da autossustentação, de olhar para a realidade sem os extremos, de não ter atitude bipolar, seja de euforia ou de depressão”, afirma.
Na situação de se encontrar com o passado, as pessoas podem escolher ter uma postura de ódio ou de não vitimização, para conseguir ressignificar o que foi vivido e deixar isso em paz. É como organizar o “arquivo morto” e olhar para frente para viver o presente sem deixar que o passado o influencie, orienta a terapeuta. “Não importa o que fizeram de mim, o que importa é o que eu faço com o que fizeram de mim”, diz Solange, citando o filósofo francês Jean-Paul Sartre.

Como é. Os grupos de constelação familiar da terapeuta costumam ter uma média de 45 a 50 pessoas. “Para as pessoas que precisam desenvolver uma maior consciência, o ideal é que o trabalho seja feito em grupo. Então, a pessoa se inscreve para participar e fazer sua própria constelação ou apenas assistir”, explica. A terapia acontece sempre durante um sábado por mês, das 8h30 às 11h, em Belo Horizonte.

“Uma pessoa participa por vez. Ela conta sobre sua questão, e, a grosso modo, encenamos um teatro espontâneo, com os personagens da história dela, seja mãe, pai ou irmãos. Outras pessoas vão participar como se fossem plateia, mas pode ter alguém com uma história que a toca e ela fica emocionada, e aí, por ressonância, vai trabalhando-se aquilo dentro dela”, diz.

O valor da terapia em grupo ou individual é R$ 580 e, só para assistir, R$ 50. Informações: www.solangerolla.com.br. (LM)


Minientrevista

FOTO: Arquivo Pessoal
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William Davies, acadêmico britânico
Autor: ‘A Indústria da Felicidade’

Quando começou essa mudança de comportamento da sociedade e quais fatores contribuíram para isso?

Nos últimos 200 anos, esse interesse pela felicidade veio desenvolvendo-se. Em primeiro lugar, houve a criação de modernas técnicas de gestão psicológica, em que os sentimentos dos consumidores começaram a ser estudados. Foi também quando o humor e o entusiasmo dos funcionários passaram a ser influenciados para gerar ganhos de produtividade. A segunda fase histórica ocorreu a partir da década de 70, com a crescente preocupação com a depressão e a ansiedade. Isso gerou a psicologia positiva, programas de bem-estar no local de trabalho e a disseminação de antidepressivos. Em todos os casos, o objetivo foi produzir pessoas mais felizes, mais saudáveis e mais trabalhadoras.

Por que você diz que essa ditadura do bem-estar vem sendo usada por governos e empresas como forma de controle social?

O governo britânico tem usado técnicas de psicologia positiva para tentar aumentar a autoconfiança dos desempregados na esperança de que eles se esforcem mais para conseguir um emprego. Mas isso também pode tornar-se uma forma de bullying. Em vez de dar às pessoas cuidados e apoio, elas são incentivados a se vender como um produto. Corporações em todo o mundo se preocupam com o humor de seus funcionários

Quais os riscos para a sociedade e a saúde das pessoas?

Isso faz com que as pessoas se sintam mais responsáveis por seus próprios sentimentos, o que potencialmente as fazem se sentir piores. Significa também que atividades inocentes, como fazer uma caminhada e cantar, passaram a ser analisadas no sentido de saber se isso produz qualquer efeito positivo ou não. As pessoas agora monitoram seu sono e sua respiração por meio de “tecnologias vestíveis”.

Como reverter essa situação?

A pergunta que devemos fazer é como podemos preservar tempo e espaço para atividades que não estão voltadas puramente para ganhar dinheiro ou nos fazer sentir mais positivos. Significa também reduzir algumas das práticas que claramente geram ansiedade. Precisamos nos afastar das mídias sociais, e as escolas precisam reinventar a educação. (LM)

 

Mercado movimenta R$ 300 bilhões por ano no Brasil

No Brasil, um exemplo claro de como a indústria da felicidade e do bem-estar movimenta o país é que esse setor tem registrado um crescimento constante e foi um dos menos afetados pela crise. A área já representa 7% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, com uma movimentação de R$ 300 bilhões por ano.

De acordo com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), o setor ganhou força nos últimos anos, principalmente devido ao envelhecimento da população e ao crescimento da classe média, porém a preocupação com a saúde e o bem-estar vai além do aumento da expectativa de vida.

“O novo perfil de consumidor, independentemente da faixa etária, está à procura de manter o equilíbrio do corpo e da mente. Nesse cenário, é cada vez mais comum as pessoas praticarem esportes, buscarem hábitos alimentares mais saudáveis, produtos e práticas que irão proporcionar prazer, bem-estar, felicidade e aumento da autoestima”, diz o relatório do Sebrae divulgado no início deste ano.

A técnica em enfermagem Marinês Alvez, 50, já aprendeu que não é olhando o que o outro conseguiu que vai conquistar a própria felicidade. “Existe, sim, uma preocupação excessiva em estar sempre bem, bonita, ser bem-sucedida. As pessoas olham as outras, veem que elas têm isso ou aquilo e ficam comparando. Se ela conseguiu isso, por que eu também não consigo? Mas esquece de olhar para ela mesma e correr atrás. A felicidade a gente tem que buscar na gente, e não no outro”, acredita. (LM)

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