Popular nos Estados Unidos, o No Fap – movimento que estimula homens a deixarem de consumir material pornográfico, a não se masturbarem e, em uma modalidade mais extrema, a abdicarem de ter orgasmos – parece começar a ser levado a sério no Brasil. E setembro, por razões desconhecidas, tem sido especialmente relevante para dar visibilidade à causa: embora seja renovado mensalmente, o desafio para que os adeptos fiquem 30 dias em abstinência repercutiu sobremaneira neste mês, ficando entre os assuntos mais comentados por usuários brasileiros do Twitter.
Chegando ao país como uma novidade, sendo na maior parte das vezes alvo de zombaria, a verdade é que o No Fap atrai uma multidão de homens em todo o mundo – e desperta a desconfiança de especialistas.
Na rede social Reddit, por exemplo, formou-se uma comunidade em torno do tema que reúne, atualmente, quase 690 mil membros. O fórum fornece conteúdo para auxiliar no cumprimento das metas, citando, inclusive, pesquisas científicas que indicariam prejuízos ligados ao consumo de pornografia e ao ato de se masturbar. Há também espaço para depoimentos sobre possíveis benefícios dessa espécie de método de reabilitação. Nesse espaço, são fartos os relatos sobre como a prática teria possibilitado uma melhoria de desempenho e de aprendizado e até o aumento do vigor – normalmente atribuído a um suposto aumento dos níveis de testosterona no corpo.
Especialistas, no entanto, demonstram que nem todas as premissas são verdadeiras. Caso da neurocientista norte-americana Nicole Prause, que pesquisa o comportamento sexual humano, o vício e a fisiologia da resposta sexual. Em um estudo de 2015, publicado no site Researchgate, ela pondera que o consumo de material pornográfico pode ser até mesmo benéfico em alguma medida – é importante detalhar que a estudiosa se concentra estritamente nas reações fisiológicas e neurológicas que o consumo desse tipo de conteúdo provocam no corpo humano, e não entra no mérito das problemáticas em relação à indústria pornográfica, contra a qual pesam reiteradas acusações de exploração, principalmente em relação às atrizes. Depois da publicação, vale dizer, Prause disse ter passado a sofrer ataques dos adeptos do movimento. Atualmente, ela vive disputas judiciais com o proprietário da marca registrada e do site da No Fap, Alexander Rhodes.
Contraponto: pesquisas sobre malefícios citadas por adeptos são imprecisas
“Embora se utilize de artigos científicos para ratificar pontos defendidos por adeptos, o No Fap usa referências, principalmente nos pontos que discutem o vício e os efeitos da pornografia na atividade cerebral, que não encontram respaldo científico”, critica Uno Vulpo, estudante de medicina e pesquisador de temas relacionados à sexualidade. Na plataforma online Senta, em que busca trazer discussões feitas nas universidades para um acesso mais universal, ele colocou o tema em pauta.
Vulpo argumenta que os artigos utilizados para fundamentar quais seriam os malefícios da masturbação e do consumo de pornografia, muitas vezes, são mal interpretados pelos adeptos do No Fap. Segundo ele, uma pesquisa que investigou a relação entre ejaculação e os níveis de testosterona sérica em homens teria dado início ao movimento. O estudo constatou que, de fato, houve aumento significativo do principal hormônio sexual masculino especificamente no sétimo dia de abstinência. Depois disso, não foram registrados outros picos, e a testosterona se manteve em níveis basais ou normais. A partir da publicação desse artigo, em 2003, passou-se a inferir que a masturbação poderia provocar queda na produção hormonal. Mas “o estudo observa apenas a diferença entre as concentrações, e não se houve uma queda na produção de testosterona em longo prazo”, pondera.
Há também o argumento de que a pornografia provocaria alterações cerebrais. “Eles (os adeptos do No Fap) se baseiam em um estudo de 2014 (conduzido pelo neurologista Gary Wilson) que analisou perfil de pessoas que se identificavam como viciadas em pornografia. De fato, o cérebro dessas pessoas têm diferenças em algumas regiões específicas, especificamente nas regiões que envolvem o sistema de recompensa”, examina Vulpo. Todavia, adverte ele, a própria pesquisa pontua não ser possível verificar se as pessoas viciadas em pornografia tinham essa condição cerebral previamente – ou seja, antes de se viciarem – ou se a pornografia causou a mutação. “O estudo indica que seriam necessárias mais investigações sobre o tema”, conclui.
O sexólogo Pedro Drubscky, por sua vez, acredita que a discussão se coloca em momento oportuno: para ele, é urgente que se fale abertamente sobre o consumo de pornografia. Afinal, com fácil e farto acesso a esse tipo de material e com a carência de uma educação sexual efetiva na educação formal ou familiar, há uma geração de pessoas que se formam sexualmente por meio de conteúdos ficcionais – que, muitas vezes, distorcem a noção de realidade, normatizam comportamentos violentos e desprezam o prazer feminino.
Mas, ele pondera que, como qualquer debate, "principalmente sobre temas densos, como a sexualidade, é preciso compromisso com os fatos e com a ciência”.
Quando há vício, masturbação pode ser danosa e trazer prejuízos, mas, em geral, prática é considerada saudável
Uno Vulpo reconhece o vício em masturbação e consumo de material pornográfico como um problema, mas alerta que a metodologia adotada pelo No Fap “não é a mais preconizada e interessante para que se trate a compulsão”. “A interrupção abrupta pode desencadear crises de ansiedade, além de outros fenômenos psicológicos, que podem ser prejudiciais – e, por isso, esse tipo de intervenção não é indicado”, garante.
A psicóloga e sexóloga Enylda Motta concorda que a masturbação pode, de fato, se tornar maléfica. “Isso acontece quando a prática passa a ser o principal foco na vida da pessoa: quando ela troca um parceiro ou uma parceira pelo prazer solitário ou quando a compulsão é tão forte que, por exemplo, o indivíduo está no trabalho ou em um shopping e precisa recorrer a idas ao banheiro para se masturbar…”, pontua.
Vale registrar: não é possível identificar uma frequência que indique o vício em masturbação, como explica Pedro Drubscky. “O importante é pensar se a prática está atrapalhando em minhas atividades diárias, se estou passando muito tempo me masturbando ou pensando em me masturbar, se estou me machucando fisicamente (com o surgimento de lesões genitais)... Se isso está acontecendo, então vale refletir se devo diminuir essa frequência”, sugere, lembrando que esse comportamento pode ser consequência de outros transtornos – como o de ansiedade – que devem ser tratados.
Por outro lado, Enylda lembra que o ato pode ser – e muitas vezes é – saudável. “Como quando é feito para: diminuir o estresse, a tensão, aumentar a libido a dois, exercitar os músculos pélvicos, para conhecer o próprio corpo, trazer melhora em relação ao sono, sensação de bem-estar”, examina, lembrando que a masturbação favorece as relações entre parceiros, “pois a pessoa aprende sobre seu corpo”.
De maneira geral, aliás, o orgasmo é capaz de liberar hormônios como a dopamina, a ocitocina e serotonina, associados a uma melhora da autoestima e ao relaxamento, completa.