Com delicadeza, Aparecida Jordão de Carvalho, a Cida, 48, manuseia o tecido estampado que, em breve, vai se transformar em uma camiseta. Não fossem as grades do Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto – localizado no bairro Horto, na região Leste de Belo Horizonte –, a cena poderia remeter a outras tantas que compõem a rotina de qualquer uma das centenas de confecções espalhadas pela capital mineira. A diferença é que Cida está detida sob a acusação de ter cometido um crime hediondo. E enquanto aguarda julgamento, se aprimora num ofício que, no futuro, pode inclusive ajudá-la no processo de reinserção na sociedade. Assim como Aparecida, outras quatro detentas vêm emprestando suas habilidades para a Liberte-se, confecção criada em 2013 dentro do presídio.
A novidade é que, neste ano, as meninas encararam um desafio e tanto para o Minas Trend, que se inicia na próxima terça-feira: as mãos talentosas do grupo foram parte importante para o processo de acabamento de peças que marcas como Plural e Molett vão desfilar nas passarelas.
Tudo começou há cerca de um mês, quando as roupas passaram, pela primeira vez, pelas mãos de mulheres que ocupam o pavilhão de celas individuais externas, direcionado, entre outras, a presas que cometeram crimes bárbaros e de grande repercussão na mídia. A iniciativa partiu da empresária Marcella Mafra, que, na verdade, começou o trabalho com todas as detentas. Foi mais recentemente que ela se debruçou sobre esse recorte, a partir da constatação de que esse grupo era recriminado por outras detentas dentro da própria penitenciária.
“Apostei neste desafio de trabalhar com essas meninas. Hoje, consigo enxergar que muitas terão um futuro. Elas querem costurar e têm projetos de levar o conhecimento adquirido aqui adiante, para a vida em liberdade”, explica Marcella.
O pequeno galpão com máquinas de costura abriga o ofício das detentas, que começa às 8h e segue até as 16h30, incluindo a revista íntima obrigatória antes e após o serviço, como medida de segurança. Além da já citada capacitação na costura, elas recebem uma remuneração equivalente a três quartos do salário mínimo, que é dividido em três partes – entre presídio, pecúlio e uso pessoal. Nesse caso, é possível direcionar o valor a uma conta a que as respectivas famílias poderão ter acesso. Vale lembrar também que as detentas têm a pena reduzida em um dia para cada três trabalhados.
Nova chance. Para Marcella, trabalhar com as detentas, além de contribuir com o processo de reintegração social, pode impactar a redução dos índices de reincidência criminal, ao proporcionar qualificação profissional e, consequentemente, a possibilidade maior de recolocação no mercado. A iniciativa abarca também o repasse de noções de empreendedorismo, justamente para que as detentas possam dar continuidade ao trabalho quando deixarem o sistema prisional.
A empresária faz uma apontamento importante: “Nunca me interessei pelos crimes que elas cometeram. E sempre deixei claro que só ficaria ali quem realmente quisesse aprender e ter essa oportunidade”. É o caso de Cida, que, na verdade, já cultivava certa familiaridade com a costura antes da prisão. Instigada a falar sobre a oportunidade, ela declara: “As pessoas lá fora acham que não merecemos absolutamente nada – ou que tínhamos até mesmo que morrer – pelo crime que cometemos”. E lembra que iniciativas como essa apontam para a ressocialização e para oportunidades de as detentas “saírem pessoas melhores do que entraram”.
Aline*, 29 anos, nunca havia se aproximado de uma máquina de costura – embora a moda sempre tenha feito parte de sua vida, de alguma forma. Antes de ser presa, há três anos, ela trabalhou em lojas e acompanhava desfiles de moda. Agora, empenhada entre agulhas e carretéis, enfatiza: “Queria trabalhar aqui porque sei que sou capaz. A maioria das presas teme a maneira como serão recebidas no mercado de trabalho. Por isso, é uma boa alternativa pensar em trabalhar por conta própria, até conseguirmos nos sentir seguras”, analisa ela, que pretende montar algo com o irmão, que é modelista.
O trabalho realizado na penitenciária se assemelha aos de quaisquer outros feitos em facções e é regido pela Lei de Execução Penal (LEP), o que dispensa os gastos com encargos. O custo, mais em conta, é justificado pela mão de obra das presas, que não é considerada especializada e foca serviços mais simples.
Esse não foi, porém, o fator que atraiu Bárbara Monteiro, estilista da Molett, que desfila pela primeira vez no Minas Trend com peças costuradas pela Liberte-se. “Foram alguns meses entendendo o processo, sobre como isso beneficiaria as detentas, antes de qualquer relação comercial com minha marca”, relembra ela. “Foi só quando senti segurança de que elas não estavam sendo comercialmente exploradas que fiz os primeiros testes. Penso que a reintegração começa ali. Elas saem de suas celas para exercer um ofício, ao qual podem perfeitamente dar continuidade quando terminarem suas penas. E é emocionante fazer parte disso”, arremata.
*Nome fictício
Sonhos traduzidos em estampas
Com o know how adquirido nestes anos de existência, a Liberte-se prepara-se, agora, para um novo desafio: o lançamento de sua marca própria. Especializada em camisetas, a Libertees vai estrear justamente no Minas Trend, como uma das apostas do Ready to Go, concurso responsável por difundir o trabalho da nova safra da moda.
O processo de desenvolvimento da Libertees começou pelas mãos da própria Marcella Mafra, no fim do ano passado, quando ela conheceu o trabalho das encarceradas no regime fechado durante uma exposição, fruto das aulas de artes realizadas na Escola Estadual Estevão Pinto, que funciona dentro da penitenciária.
Ao lado das sócias Sabrina Mafra, Daniela Queiroga e Andrea Aquino – também a estilista da marca –, Marcella decidiu transformar os desenhos em estampas, com apoio da Dream, empresa de que não utiliza água durante o processo de estamparia. “Desconstruímos os cinco desenhos selecionados e criamos novas estampas, preservando, na malha das camisetas, as cores que elas usaram no papel”, conta a estilista Andrea. “É muito importante valorizar o potencial das meninas e criar uma expectativa na vida delas”, acredita.
O outro lado. A disciplina de artes foi uma das maneiras encontradas pela administração da penitenciária para tornar menos árdua a rotina das mulheres detidas, acredita o professor Eder Batista da Rocha, que leciona na escola desde 2004. “Os desenhos são geralmente relacionados aos momentos que elas vivem, seus desejos e sonhos”, explica ele.
Mas Eder ressalta que, muitas internas, optam por frequentar as aulas com outro objetivo – é que cada 12 horas de aula podem ser revertidas em um dia de remissão na pena. Ainda assim, não é raro que muitas acabem contagiadas pelo ambiente. “Elas entram para abreviar o tempo da prisão, mas, depois, acabam pedindo para aumentar a duração das aulas”, confidencia.
Ana Paula Lima, 36, frequenta a aula de artes há três anos, mas, curiosamente, revela que, antes, não tinha muita familiaridade com os lápis de cor. Empolgada, ela não descarta que possa vir a apostar nesta vertente quando ganhar a almejada liberdade. “Quando estou desenhando, me sinto livre e até me esqueço que estou presa. Me sinto importante, é muito gratificante. Imagina se meu desenho ficar famoso?”, diz ela, que foi condenada a 27 anos de prisão. O conhecimento, frisa, é um bem que ninguém tira. “É para levar para o resto da vida”, afirma.
Os desenhos de rosto assinados por Jéssica Cássia de Araújo, 21, trazem detalhes minuciosos, perfeitos para serem elevados ao status de estampas da coleção, emblematicamente batizada de “Vida”. “As mulheres presidiárias são ainda mais criticadas na sociedade. Saber que as pinturas vão virar estampas é muito legal, inclusive por revelar um lado bom aqui de dentro. É como se alguém reparasse que há algo de especial em você, que você tem potencial para alguma coisa”, analisa.