Doze anos após o governo de Minas Gerais anunciar o projeto de transformar a Fundação Ezequiel Dias (Funed) na primeira indústria brasileira do promissor segmento de medicamentos biofármacos, a unidade que seria pioneira e consumiu pelo menos R$ 80 milhões em investimentos não só nunca produziu como não terá mais como fabricar os produtos para os quais foi planejada. A obra foi projetada e erguida no governo Aécio Neves (PSDB).
Por uma série de problemas de gestão e contratos questionados judicialmente, já revelados em reportagens anteriores de O TEMPO, a unidade V começou a ser construída em 2005 para produzir inicialmente medicamentos biológicos contra hepatite C – interferon alfa e a eritropoitina humana. Medicamentos biológicos são aqueles feitos a partir de organismos vivos, as chamadas proteínas terapêuticas.
A obra atrasou tanto que esses dois produtos, fornecidos à população pelo SUS, foram substituídos por outros mais avançados, o sufosbuvir e o daclatasvir. Assim, a Funed viu escorrerem pelo ralo R$ 20 milhões aplicados em transferência de tecnologia, pois se preparou para produzir medicamentos obsoletos, que não tinham mais mercado.
A aposta passou a ser a fabricação, na nova unidade, da vacina contra meningite C. Em 2009, o então governador de Minas Gerais, Aécio Neves, anunciou a assinatura de um acordo com o laboratório Novartis do Brasil para que Funed participasse de outro projeto de transferência de tecnologia, no qual a fabricante suíça repassaria o know how de produção da vacina meningogócica C ao laboratório público mineiro.
Conforme anúncio do governo de Minas, todo o processo estaria concluído em 2014, quando a produção da vacina estaria a cargo da Funed.
Porém, mais uma vez, os planos não se concretizaram. A fábrica-símbolo do que seria a vanguarda mineira na saúde pública atualmente só serve para rotular e embalar as vacinas, que continuam a ser fabricadas pela Novartis e entregues à Funed, que as repassa ao Ministério da Saúde. E o pior, a unidade não terá como produzi-las, pois sua capacidade não atende ao Programa Nacional de Imunização, do Ministério da Saúde.
Isso significa que, se a Funed levar adiante o projeto de transferência de tecnologia, que prevê ainda duas de quatro etapas, terá que construir uma outra unidade. A informação foi repassada à reportagem por um dirigente ligado ao setor produtivo e confirmada pela direção da Funed.
“Para a finalização da transferência e a produção do quantitativo para atender ao Programa Nacional de Imunização, do Ministério da Saúde, será necessária a construção de outra unidade fabril, pois a Unidade de Biológicos da Funed não terá capacidade operacional para atender a essa demanda”, informou a fundação.
Mais R$ 15 mi
A unidade V da Funed já deveria ter recebido também a produção de soros antipeçonhentos, ou antiofídicos, mas a direção da instituição não conseguiu fazer as adequações necessárias na planta, que tem três parques produtivos.
Para que a unidade esteja apta a dar início à produção dos soros, que são fornecidos à população pelo SUS nos postos de saúde, serão necessários pelo menos mais R$ 15 milhões em investimentos na unidade, que já consumiu cerca de R$ 80 milhões desde 2005.
Enquanto isso, a Funed reforma unidade antiga responsável pela produção dos soros. Assim, a fabricação está paralisada, contribuindo para o desabastecimento dos estoques do Ministério da Saúde e consequente falta do produto nas unidades públicas de saúde, em todo o país. Mortes já foram registradas, como mostrou O TEMPO.
Carta-manifesto
‘Unidades industriais destruídas’
O setor industrial da Funed, que chegou a fabricar 1 bilhão de medicamentos em 2014, foi perdendo força até ver sua produção reduzida a zero nos últimos dois anos. Apenas a fabricação de soros antipeçonhentos para o Ministério da Saúde estava em operação, ocupando uma de quatro unidades do parque industrial da Funed.
Em janeiro deste ano, porém, a fundação interrompeu também a produção de soros para iniciar uma reforma prevista para durar seis meses. Nesse período, o fornecimento de soros para o ministério está a cargo apenas do institutos Butantan e Vital Brasil, que ainda estão em reforma. Com isso, está faltando soro nos municípios.
Funcionários da comissão de fábrica da Funed enviaram à Secretaria de Estado da Saúde e à diretoria da fundação uma carta, na qual manifestam sua preocupação com o futuro do setor. “Vemos hoje uma Funed, especificamente a unidade industrial à qual estamos subordinados, completamente sem rumo e com escassas opções de caminhos a serem seguidos”, diz a carta.
“De produtor centenário e tradicional com elevada expertise e expressiva participação na fabricação de farmoquímicos e soros à SES/MG e ao Ministério da Saúde, passamos agora, ao longo do corrente ano, com uma produção inexpressiva de soros e a paralisação definitiva da linha de produção (...) Hoje somos apenas atravessadores da vacina MenC para o Programa Nacional de Imunizações”.
Prossegue a carta: “Vemos hoje unidades industriais destruídas, como a antiga Unidade I; unidades estruturadas cm recursos provenientes do MS, como a área de líquidos (xaropes), abandonadas e sem possibilidades (...). Áreas certificadas sem produtos por perda de registro, como as Unidades II e III, sem contar a Unidade V, que possui uma área estruturada cuja proposta original seria a transferência da produção de soros em 2015, e agora se fala provavelmente em 2020”.
“Não podemos deixar acontecer com o Serviço de Produção de Soros o que aconteceu com as outras unidades fabris da Diretoria Industrial”, conclui a carta.