Escreveu o filósofo, urbanista e arquiteto francês Paul Virillo em seu magnífico “O Espaço Crítico”, de um profético 1993: “A primeira janela é a porta, a janela-porta, necessária ao acesso e a realidade da residência, já que seria impossível conceber casas sem meios de acesso”. Janelas e portas. Eu sei, são tempos de “espiadinhas” nos reality shows, acesso midiático à carne humana, carnavalizada, superexposta, precificada. Mas temos, ainda bem, referências mais belas em relação ao assunto, como nos lembra o canal televisivo Arte 1, que está exibindo este mês o belo documentário “Edward Hopper e a Tela em Branco” sobre arte e vida do brilhante artista norte-americano.
Minha memória quase imediata em relação a janelas me remete a Hopper, também conhecido como o pintor que melhor representa nossa interioridade, voyeur delicado e genial de nossas intimidades. Acredito que sua “teimosia” em pintar janelas, frestas, destacando a luz do sol editada por molduras que invadem com suavidade e melancolia os quartos pintados por ele são, na verdade, meio de acesso ao que somos.
O corpo, afinal, é a casa da alma, certo Virillo?
Entendo o pânico das pessoas – eu incluído – diante de uma obra ligada a, aham, cof, artes visuais. Aquela porra daquele retângulo emoldurado olhando tiranicamente pra gente e cobrando: “Tenha algo a dizer, fale das minhas cores, dos meus traços, das minhas formas, da minha assinatura”. E a gente ali, tentando decifrar (o quadro e nós mesmos) se perguntando onde foi que erramos. Ah, a alta cultura, os símbolos artísticos elevados, esse fardo pesado que carregamos, que nem os boêmios ingleses do século XVIII, com seus cafés e sua vontade de “espaço público”. Afinal, eles também sonhavam uma espécie de democracia contemplativa.
Pense bem, as canções tem versos, o cinema tem movimento, a vida tem ação. Se prender, surpreso, reconhecido, diante de um quadro, é vida em câmera lenta. É cobrar silêncio no mundo ruidoso em que estamos afundados. É querer concentração em um universo hipersaturado de imagens velozes e estonteantes. Secretamente, gosto de acreditar que a solução de tal “problema” não esteja no coletivo, no que está “fora”: é algo pessoal, intransferível, uma mediação entre o propósito do artista e a vontade do espectador. Bateu ou não bateu, simples assim.
Bem... não é tão simples assim, a gente sabe, e quem somos nós para ignorar as inúmeras, geniais e necessárias contribuições que tantos nos sinalizaram, no sentido de buscar uma apreciação estética abalizada. Mas é bom quando alguém– algum artista, alguma obra, algum instante de apreciação qualquer– consegue elevar e sobressair, sobre nossos sentimentos, qualquer discussão sobre estética, técnica, contexto histórico. Aquela coisa: a melhor arte muitas vezes não se explica, se sente.
Hopper me faz sentir. Com suas janelas que são o campo para a luz, descortina o que somos, profundamente. As mesmas janelas que filtram o brilho do que está fora, encerram uma luz interna, que permite iluminar nossos espaços subjetivos mais sombrios, ocultados por tudo que está lá fora. Como farol menos interessado em sinalizar uma rota de navegação e mais disponível em iluminar aquelas camadas mais profundas, o oceano de significados que guardamos, distantes do mergulhos superficiais: “sunken treasures”, tesouros naufragados, como cantou Jeff Tweedy, do Wilco.
Hopper é, graças, muito reconhecido. Penso se não concordo com o grande escritor e crítico britânico Tony Parsons, que “Nighthawks” (talvez sua obra mais conhecida) é o “maior” quadro feito. Não dá para negar o apelo e a beleza intrínsecas à obra. O olhar macro sobre uma quarteirão, um bar/café/restaurante que nos leva à percepção do quão micro podemos ser, diante do mundo lá fora, além das portas e janelas. Qualquer bêbado e/ou solitário; qualquer ser humano, enfim, pode se sentir autorretratado, na obra-prima citada pelo britânico.
Curiosamente, a obra mais famosa do pintor não é tema de destaque do documentário. Comeram bola, os franceses. Porque outro dia mesmo me emocionei ao notar que, do ponto de vista que a imagem foi focada, parece que, se dentro do quadro, nosso olhar o foca o solitário no bar como se estivéssemos o observando de uma... janela.
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