Ela pegou o cigarro e queimou a mão. Eu corri para impedir, mas ela fugiu e continuou a queimar a mão... Dizia que isso era para ela sofrer mais na pele o que estava doendo dentro de si. Seu ciúme era desmesurado, assustador, sem motivo real, mas ela me olhava como se eu estivesse arruinando a sua vida. E não adiantava falar, porque ela dizia que eu estava comendo todo mundo porque as mulheres não mais tinham medo de engravidar e ficavam rondando os homens. E ameaçou me jogar um elefante de louça de cima da prateleira.
É verdade. As mulheres não mais tinham medo de engravidar porque a pílula anticoncepcional tinha chegado.
A liberdade sexual foi uma revolução dos sentidos. Mas com a liberdade veio também a angústia que ela traz. Nada mais confuso do que ser livre para as meninas da época. Mesmo depois da pílula, persistia o terror de uma liberdade inesperada; havia ainda um forte apego a vestidos de debutantes, ao organdi branco, aos buquês e véus de noiva esvoaçando nas almas virgens. Os rapazes tinham uma experiência sexual mais aberta, com a benção dos bordéis, mágicos redutos dos pecados – pequenas “revoltas conformistas”. As relações amorosas ficaram complicadas principalmente para as mulheres, enquanto nós contemplávamos sua desorientação como se tivéssemos um harém. Não sabíamos direito quais eram os limites, e aí surgiram tentativas de amores experimentais, poligamia assumida, sexo a quatro, surubas desastrosas. Um amigo meu bem cínico sentenciou: “Suruba tem de ser ímpar”. O sexo dos 60 era um comício; queria acabar com a culpa, com o proibido. Falo de Ipanema, claro. Todas as sacanagens foram testadas, mas chegou-se ao outro lado com uma vaga insatisfação. O que faltava? Faltava o pecado. O desejo sempre precisou da lei. Hoje, as relações não têm mais o caráter de uma mutação histórica, quando sexo era político. Eu me lembro de mim mesmo tentando convencer (sordidamente) uma moça a entrar no apartamento: “Meu bem, nosso amor também é uma luta contra o imperialismo norte-americano”. E, mesmo assim, ela (talvez uma “neoliberal” prematura) não entrou.
Na época, a liberdade criou um mercado novo: os motéis, decisivos para a vida sexual daqueles tempos. Lembro-me quando surgiu o Kings, luxuoso, com neon e fachada greco-romana, diferente dos secretos e pulguentos hoteizinhos tolerantes.
Na universidade, as moças se sentiam na obrigação de “dar”. E era tudo muito desastrado; as transas não davam certo – gozos frios, broxadas irreversíveis. Como ser livre sem ser “fácil”, as chamadas “galinhas”?
As meninas foram divididas em dois grupos: as “inatingíveis” e as “sem-vergonha”. Eu, pessoalmente, desenvolvi um covarde romantismo: de longe, eu era um fauno e, de perto, um pierrô. As meninas que eu amava não “existiam”; elas flutuavam diante de mim como “dulcinéias” impossíveis. A pílula também me libertou, e parti para as neo-garotas de Ipanema. E comecei a conhecer mais as dores de amor da vida real.
Isabela já tinha sido deflorada, mas se recusava a repetir a dose porque sonhava com um casamento feliz. Não adiantava implorar, pois ela não cedia: “Não dou mais para ninguém; quero ser virgem de novo!”
A Ciomara tinha três namorados (ela achava isso) e chorava na cama, num transe meio epiléptico, com olhos revirados em alvo, num sacrifício ritual de gritos, do qual acordava sem se lembrar de nada. Ela vivia culpada porque achava que estava traindo os outros dois; mal sabia que os três se revezavam em machismos secretos, narrando detalhes íntimos da cama.
Flavia ficou meio paranoica porque tinha uma bundinha linda e achava que os rapazes só a queriam por causa disso. E era verdade. Os rapazes se regalavam com o súbito aumento do mercado sexual. No entanto, com a liberdade, as paixões não tinham mais o paradigma dos namoros, noivados e casamentos. Sem projeto e sem linguagem, as ligações ficaram frágeis, e as rupturas, mais frequentes. Fui a uma festa em 1968 em que se separaram dezenas de casais, inclusive eu.
E, com sua independência proclamada, as mulheres se vingavam da arrogância dos machinhos. Assim, os homens sofreram com a multiplicação dos cornos. Mulheres mais livres fizeram seus preconceitos machistas aparecerem na “cornidão”. Creio mesmo que homem só vira homem quando ganha chifres didáticos. Aí, conhecem o vazio da solidão. E sujeitos onipotentes viram românticos chorosos. Também havia as tragédias. Um desses traídos que conheci, lindo, rico, por dor de corno meteu a cabeça no forno e abriu o gás, com as frestas da cozinha vedadas com fita isolante. E deixou um aviso na porta: “Cuidado. Não acendam fósforos”.
A mulher de um amigo meu era frígida como a neve. Sentia-se como uma aleijada indesejável. Cada vez que ia para a cama, era um calvário. Ele tentou tudo, nada rolou. Até que, em meio a uma discussão, ele falou que ia embora, e ela disse-lhe: “Tudo bem, você sai pela porta, e eu saio pela janela”. E se jogou do oitavo andar.
Meu drama foi diferente. Quando ela queimou a mão com o cigarro, confesso que me emocionei com aquela dor. Pareceu-me uma paixão sem limites. Ela era linda, corpaço, e às vezes saía da tristeza e ficava eufórica, rindo muito. Eu ficava nervoso com aquela louca instabilidade, mas sua beleza me aprisionava.
Até que um dia, depois de severa briga, ela me apareceu na porta do apartamento e, diante de mim, fez dois cortes no braço. “Passou a dor de dentro... Isto é um presente para você”, disse, ensanguentada. Em pânico, comecei a fugir dela. Tive de viajar por meses, e sumimos um do outro.
Talvez um ano depois, passava de carro pela avenida Atlântica de madrugada e, numa esquina do Posto Seis, eu a vi, em pé, linda, de saia de couro curta e cabelos alourados. Não parei, ainda com a dúvida se era ela mesma. Era, sim. Depois da dor dos cortes, entendi que ela queria conhecer os mistérios da prostituição.
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