O boteco do Sinfrônio tem algo de surreal, de fantástico, de delirante, a despeito de não ter absolutamente nada demais. Situado na parte baixa da cidade, na praça da Estação, em um quarteirão fechado onde se concentram pontos de ônibus que vêm e vão para as periferias mais distantes da cidade, é um bar de passagem, o que quer dizer que praticamente não há fregueses habituais. É um ambiente pequeno e mal cuidado, uma autêntica espelunca onde só se vende cigarro picado, marcas de cerveja baratas, cachaça, opções de petiscos resumidas a uma estufa ensebada, pão com ovo e caldo de mocotó. A precariedade do lugar e alta rotatividade são fatores que, suponho, favorecem acontecimentos bizarros em grande escala. Poderia, a título de exemplo, buscar vários na memória, mas fica aqui o relato do mais recente.
Era uma terça-feira ordinária como qualquer outra, chovia torrencialmente lá fora, o relógio da parede marcava pouco mais de meia-noite e, somando-se esses fatores, era compreensível que o boteco estivesse relativamente vazio. Naquela noite apenas dois funcionários atendiam os poucos clientes, a saber: uma mulher de uns 50 anos, muito maquiada, metida em um vestido vermelho roto, dois camelôs que, durante o dia, vendem suas bugingangas na calçada em frente, um outro sujeito com camisa azul turquesa em que se lia, na altura do peito, o nome de uma empresa de ônibus, um velho albino trajando terno e gravata pretos, com um chapéu da mesma cor, e um senhor franzino que, ocupando uma das três mesas que o espaço comporta, descansava sobre o colo uma sanfona vermelha. Sinfrônio, o proprietário, também estava lá e eventualmente trocava alguma palavra com os dois camelôs, que conversavam animadamente entre si.
O homem com a sanfona olhava insistentemente para fora, como se estivesse esperando alguém, o que achei, a princípio, improvável, por causa da tempestade. Mas o fato é que, passados alguns minutos, entrou no bar uma menina maltrapilha, aparentando ter não mais que 15 anos, com os andrajos que vestia encharcados. Ela foi direto ao balcão, pediu uma pinga e foi atendida sem qualquer tipo de ponderação acerca da sua pouca idade ou de sua possibilidade de pagar pelo pedido. Ninguém no lugar fez caso dela. Pouco depois, para minha surpresa, chegaram mais dois homens, na faixa dos 60 anos, também molhados da cabeça aos pés. Um deles trazia uma zabumba embrulhada em um plástico grande, que a protegia da chuva, e o outro tinha nas mãos um triângulo. Os dois se sentaram junto com o senhor franzino com a sanfona e, depois de conversarem brevemente alguma coisa, os três se levantaram e, sem pedir permissão a ninguém, começaram a tocar.
De início, ninguém deu muita importância à apresentação mambembe e despropositada. Eles ainda estavam na primeira música, um Jackson do Pandeiro, acho, quando chegaram dois travestis, cada uma com uma sombrinha enorme e multicolorida, o que as mantinham um pouco menos ensopadas do que os outros clientes recém-chegados. Uma delas era loira, estava de maiô preto, short jeans e meia arrastão. A outra, uma negra retinta, parecia saída de um baile de gala, metida em um vestido verde musgo cravejado de lantejoulas.
Eu assistia curioso e um tanto pasmo àquele afluxo completamente inesperado, pelo fato de ser terça-feira, pelo adiantado da hora e pela chuva. Dizer que o forró que o trio de sanfona, zabumba e triângulo executava animava o ambiente é dar à desinteressada apresentação uma dimensão que ela não tinha, mas o fato é que os travestis se animaram e começaram, sem a menor cerimônia, a dançar uma com a outra. Os presentes assistiam a tudo sem demonstrar qualquer espanto ou estranhamento, até que a mulher maquiada e de vestido vermelho se levantou, caminhou até o velho albino e o convidou para dançar também. Até então não tinham trocado uma palavra sequer. Logo em seguida, um dos camelôs foi até a menina que bebia cachaça e a chamou, com imediata anuência, para o arrasta-pé. Uma música após a outra, os três casais formados iam trocando de par, ocupando com aquele improvável bailado o espaço exíguo do boteco do Sinfrônio. Do lado de fora, bem próximo à porta, sob a tempestade, um casal de mendigos também dançava animadamente.
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