Perguntei, então, que lembranças guardava da infância e adolescência em sua cidade natal. “Sei que havia uma lagoa, bem no centro da cidade”, respondeu, antes de uma pausa com direito à testa franzida, que refletia o esforço para dissipar a névoa que lhe turvava a memória. “Aos sábados e domingos, acontecia uma feira ou algo que o valha na região da orla onde se concentravam os restaurantes. A cidade, que era pequena, convergia toda para a lagoa, gente de todo tipo, muitas crianças”. Outra pausa. “Meu avós costumavam me levar. Mas é tudo muito vago na lembrança, só mesmo a aglomeração e o reflexo cegante do sol de fim de tarde espelhado na lagoa”.
Você morava no centro da cidade ou perto dele?, perguntei. “Não era perto. Minha casa ficava na zona rural. Havia muitas pastagens, alguma mata ciliar, caminhos de terra. Posso estar idealizando um pouco, misturando algum cenário de história que eu tenha lido, mas acho que era assim mesmo. Como te disse, ainda está tudo meio confuso”. Neste momento, seu semblante adquiriu um ar sereno, como se o esforço para reconstruir com precisão aquela vida pregressa fosse vão. Ou como se a eventual fantasia a se misturar com a realidade também contasse como um dado da memória.
“No distrito em que eu morava, aconteciam quermesses. Guardo a lembrança um tanto nebulosa do bingo das beatas, das barraquinhas de paçoca, de churrasco e de maçã do amor, do algodão doce e dos jogos de argola e pescaria. Só não estou bem certo se isso era mesmo nas quermesses ou quando algum parque de diversões aportava por aquelas bandas de lá”, disse, acendendo calmamente mais um cigarro – já somavam cinco ou seis desde que começamos a sessão.
Qual sentimento você guarda desse período? “De apreensão”, respondeu de pronto. Apreensão? Com o quê alguém que está começando a vida, que é livre de compromissos, que está no desfrute da meninice poderia ficar apreensivo? “Não sei. Não era ocasional, era mais um estado de espírito, perene, algo parecido com fome ou sede”. A placidez que sua expressão havia adquirido há pouco novamente deu lugar a um ar de inquietação.
“Também tem uma lembrança, que não descarto ser um pesadelo recorrente: eu e um grupo de amigos ou primos que eu não saberia identificar seguíamos por uma estrada de terra ladeada por enormes bambuzais. Eles formavam paredes que faziam do caminho um corredor do qual só era possível sair seguindo em frente. Havia buracos no chão, enormes, impossíveis de estarem ali; talvez, afinal, fosse pesadelo mesmo. A tarde caía rápido e o vento fazia com que os bambus batessem uns contra os outros, o que provocava um barulho sinistro”.
E é só isso? Você e seus amigos ou primos andando por essa estrada? “Não. Um de nós se deu conta de que estávamos sendo seguidos. Não sei se alguém efetivamente viu alguma coisa, sei que, de repente, estávamos todos correndo apavorados, tentando desviar dos buracos no chão, sem poder sair para as margens da estrada, por causa dos bambus. Eu corri mais rápido, acho que me distanciei muito do resto do grupo, e sem coragem de olhar para trás, para o suposto perseguidor, fui tomado pelo pânico, achando que estava sozinho, que os outros tinham sido capturados, ou tinham caído nos buracos, e que, por mais que eu corresse, o que quer que me seguisse estava a poucos passos”.
De súbito, ele ficou mudo, com o olhar perdido, não na distância, mas como o de alguém que mira o próprio interior. Tem mais jeito de pesadelo, comentei. O que aconteceu depois? “Não me lembro”, disse, devolvendo a pergunta com um ligeiro tom de ironia: “Algo traumático?”. Alguns pesadelos costumam ser, retruquei. Essas lembranças alimentaram, de alguma forma, os livros que você escreveu e que foram censurados? “Não creio. Minha escrita nunca foi alimentada pela memória, pelo menos não objetivamente”, disse, ao mesmo tempo em que anotava alguma coisa na caderneta que trazia no bolso.
Texto originalmente publicado no dia 8.2.2012