Gosto de trabalhar em urgência. Por uma questão de ter paz de consciência, de poder dormir por ter feito tudo o que sabia e a medicina disponibilizava para as pessoas que atendi.
Em pronto-socorro aprendi muito sobre o ser humano, profissionais da medicina e clientela. Há coisas para rir, chorar e refletir. Sempre que vejo/ouço notícias sobre inaugurações de hospitais, a primeira imagem que aparece são os quilômetros de exames complementares desnecessários, um escoadouro ininterrupto de dinheiro que anemia o serviço público, mas que cada dia se firma mais como o poder número 1 da prática da medicina defensiva, sequestrando dinheiro precioso que poderia ser empregado em outras ações.
Conforme José Guilherme Minossi e Alcino Lázaro da Silva, “a medicina defensiva surgiu na década de 1990 nos Estados Unidos, numa tentativa de fazer frente às crescentes demandas legais dos pacientes. Pode ser definida como uma prática médica que prioriza condutas e estratégias diagnósticas e/ou terapêuticas e que tem como objetivo evitar demandas nos tribunais... Na prática, se caracteriza pela utilização exagerada de exames complementares, uso de procedimentos terapêuticos supostamente mais seguros, encaminhamento frequente de pacientes a outros especialistas e a recusa ao atendimento de pacientes graves e com maior potencial de complicações” (“Medicina Defensiva: Uma Prática Necessária?”).
Os quilômetros de exames solicitados que nada têm a ver com a queixa só dizem uma coisa: “Pouca medicina”! E “pouca medicina” significa que a pessoa doente não foi devidamente examinada, pois até hoje, sob o concurso da medicina tecnologizada, a clínica ainda é soberana! E exames complementares bem solicitados, segundo a queixa e o exame clínico de quem o médico consulta, recebem o justo nome de “exames complementares” porque de fato são complementares apenas da história ouvida e do exame clínico realizado! Não mudou, continua assim!
Há algo errado e irresponsável quando, após 12 horas de plantão, 90% ou mais das telerradiografias de tórax solicitadas, num rol de 50, são normais! Acontece! Verifiquei várias vezes: “Ave, Maria, no plantão da Fátima nem radiografia de tórax a gente pode pedir sossegado”, ouvi de um colega campeão de raios X normais! Na lata: “Tudo o que temos do exame de urina, hemograma, endoscopia, tomografia a ressonância magnética é para quem deles precisa, e não para suprir a falta de exame clínico e a incapacidade de montar uma hipótese diagnóstica”.
Quando ainda “atendia à porta”, a pessoa doente mal sentou e disse: “Doutora, a senhora atende a gente muito bem, mas pede pouco exame. Hoje quero fazer todos os exames!” Fiz de conta que não ouvi. Era uma portadora de angina estável conhecida do serviço. Indaguei por que ela veio ao pronto-socorro. Ouvi com atenção, examinei e encaminhei à sala de medicação com os pedidos dos exames do nosso protocolo. Ela verificou os pedidos e disse: “Eu não fico boa aqui nas ‘clínicas’ porque só pedem esses examezinhos bobos”.
Contra a medicina defensiva – que, “além de ineficiente em proteger o médico, traz consequências graves ao paciente e à sociedade, já que gera um custo adicional incalculável ao exercício da medicina, determina um maior sofrimento ao doente e faz com que haja uma deterioração na relação médico-paciente” –, temos de reafirmar os referenciais básicos da eticidade dos serviços de saúde, compreendendo o dito pelo bioeticista Daniel Callahan: “Se, para algumas pessoas, uma aspirina resolve suas doenças, outras necessitam de transplantes de órgãos”.
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- Fatima Oliveira
- Artigo
A prática da medicina defensiva não beneficia a ninguém
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