Sempre achei o vestibular uma tremenda crueldade. Em minha época, não me dava conta da gravidade do evento; fiz e passei raspando – para abandonar o curso na metade, botar uma mochila nas costas e correr mundo. Nunca me arrependi.
Mas até hoje não me conformo com o sistema. Pegam-se um jovem na faixa dos 18 anos, colocam-no diante de dezenas de opções e obrigam o cara a escolher sua futura profissão e destino, já tão cedo.
Existem aqueles que desde criança exibem suas vocações e com elas se realizam. Porém, a cada dia escuto mais garotos vacilando entre as carreiras de medicina e turismo, espantando-me com a distância que separa uma sala de cirurgia de um cruzeiro no Caribe.
Escolher uma profissão é um encargo que envolve sobrevivência e prazer simultâneos, mas poucos têm a sorte de combinar os dois lados da moeda. Antigamente, as opções eram poucas: engenharia, medicina, economia, administração ou direito. Hoje a coisa mudou, há dezenas de caminhos à frente do vestibulando. De um lado é bom: a variedade permite que o sujeito afine suas preferências, mas não deixa de ser um complicador.
Uma coisa é você escolher entre marmelada ou goiabada; outra é abrir uma caixa de bombons e só poder comer um. Cecília Meireles estava certíssima: “Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo... E vivo escolhendo o dia inteiro!” Angústia suprema é ter 20 caminhos, escolher um deles e viver eternamente curioso quanto aos outros 19.
De aluno rebelde e folgado – passava raspando, salvo por décimos providenciais – transformei-me num adulto bastante interessado na educação. Acho que há muita coisa errada hoje em dia, começando pela condição do “aluno”, que se sente como “cliente”, alguém que – na própria cabeça – está “comprando” o conhecimento. Que engano! Por outro lado, imagino a quantidade de talentos e prováveis gênios que abandonaram os estudos, encalhados numa ou outra matéria de utilidade duvidosa na vida prática.
O tema “vocação” me faz lembrar a história de Javi, frequentador do centenário Café Gijón, em Madri, ponto de encontro de pintores, músicos, escritores, cineastas e malucos diversos. A melhor definição do local foi dada por um de seus mais assíduos visitantes, José Bárcena, definindo o café como o “habitat de uma estranha constelação de consagrados e de cultivadores tenazes do fracasso.” Sempre que o assunto “vocação” ou “profissão” entrava nas animadas rodas do Café Gijón, alguém encerrava o papo com uma frase enigmática:
– Bueno, hay Javi... – e todos gargalhavam.
Javier, ou Javi – um dos habitués da casa – tinha sido um jogador de futebol medíocre, eterno reserva de um time catalão. Numa partida dramática, com a equipe desfalcada por contusões e expulsões, foi escalado como última alternativa pelo descrente técnico. Entretanto, algo aconteceu. Contrariando as piores expectativas, Javi teve seu corpo – ou seus pés – tomados por algum espírito futebolístico endiabrado e brilhou, marcando dois gols e virando o placar.
A menos de um minuto para o apito final, Javi, na barreira, levou uma bolada violenta na cabeça. Caiu desmaiado, chamaram a ambulância. O petardo deixou-o fora de si por bastante tempo, temia-se pela saúde do bravo artilheiro. Quando acordou no hospital, olhou em volta, alheio a tudo. Com voz fraca, pediu papel e lápis. E disparou a escrever, enchendo páginas e mais páginas de um bloco de receitas que lhe deram.
Desde esse dia, Javi tornou-se escritor. Versos, poemas, sonetos, prosas, crônicas do cotidiano de Madri. Escrevia febrilmente, assentado a sua mesa favorita no Café Gijón. Um homem rude, que mal sabia rascunhar uma carta, realizava-se assim, sem chuteiras. Sabedor da história, vi-o algumas vezes no café, mirando-o de esguelha. Compenetrado, Javi olhava para o teto, para as pessoas em volta e retornava aos seus escritos, frenético.
Em tempo: contaram-me que seus textos eram horríveis, sem pé nem cabeça, desprovidos de qualquer lógica ou do mais banal e rasteiro valor literário. Porém, viveu feliz assim até o fim e nunca mais ligou pro futebol.
Como são estranhos os destinos de uma bola chutada aos 44 minutos do segundo tempo.