Esperavam com ansiedade a vinda do Natal, oportunidade única para a família se reunir, entre filhos, noras, netos e sobrinhos. O filho mais velho viria do interior com esposa e filhos; o segundo, de Londres, onde há alguns anos reside. Razoavelmente maluco, tinha o apelido de Charles, provavelmente devido a sua “origem britânica”. A terceira, Sílvia, encrenqueira e de mal com a vida. Resumindo: uma chata! A quarta, Célia, decidindo casar-se com Jesus, virou irmã carmelita. A quinta, Francisca, da pá virada, como diriam as primas e metade da cidade onde cursou, a trancos e barrancos, a faculdade de agronomia.
– Só se for para plantar maconha – diziam na época as más línguas.
Mas a Francis, como gostava de ser chamada, não estava absolutamente nem aí para o que dissessem ou deixassem de dizer a seu respeito. No fundo, era uma natureba, com mania de hare krishna, xamãs, discos voadores e coisas do gênero. Só porque, de vez em quando, saía pelada na rua em protesto por alguma coisa, pegou fama de destrambelhada. Na família, apenas o irmão Charles a compreendia e a apoiava de forma integral.
Também os gêmeos, Lucas e Mateus, iguais fisicamente e na quantidade de filhos: três. Mas completamente diferentes na maneira de ser – Lucas era o sonhador, Mateus o prático, como gostava de observar a mãe, Lourdes.
D. Lourdinha, como era conhecida na cidade, teve uma vida de gravidezes e rebentos, em que nem sequer teve tempo de pensar em enjoos, desejos, dietas e vida profissional. Mãe em tempo integral, até o dia em que o marido “derramou”, e ela, sozinha, teve de tomar as rédeas da situação.
Enfim, Natal, quando, mais uma vez, se reuniriam ao som de gritos, risos e rezas – coisa de que a matriarca e a irmã carmelita faziam questão e que os irmãos, embora mais desligados, também levavam a sério.
O mais querido pela criançada, sem dúvida, era o Charles, que, por vários Natais, trazia de Londres, enrolado numa fita dourada, um pôster gigante da rainha. Gostava de desembrulhar aquilo e ler para a meninada a mensagem escrita em letras garrafais: “Aos meus primos queridos, com um grande abraço da Elizabeth”. Mostrava para as crianças, passando de mão em mão para, depois, com toda pompa e circunstância, guardá-lo de volta, antes contando histórias curiosas sobre a “prima” e o seu Palácio de Buckingham. Até que um dia, resolvendo inovar, trouxe um pôster do xará, o príncipe Charles, que, naturalmente, não fez o menor sucesso.
Também a Francis, sob o olhar reprovador da irmã carmelita, dava o maior ibope. Adorava contar casos de ETs, lobisomens e suas viagens extraterrestres, para o espanto da meninada.
Durante o almoço, discussões eram inevitáveis, afinal, como colocar na mesma mesa personalidades tão distintas, que nem mesmo pareciam vir da mesma matriz? O mais velho, com aquele seu ar bonachão, nada questionava; ao contrário da Francis, que questionava tudo: desde o peru assassinado até a árvore europeizada.
– Matam os perus, degolam os bichos para comemorar um nascimento. Qual a lógica disso? Será que Jesus aprovaria essa crueldade?
E a plateia, indiferente, com exceção da carmelita:
– Não ponha Jesus nessa história, pelo amor de Deus, Francis!
E a desmancha prazer:
– Vamos parar com essa discussão idiota, que já estou esfomeada. Mãe, me passa o peru!
– Gula também é pecado – dizia a carmelita.
Continuaram suas discussões sem pé nem cabeça até serem interrompidos por um grito vindo da cozinha. O cachorro tinha comido a sobremesa, uma fantástica musse de chocolate. De repente, outro grito, desta vez vindo do quintal, onde os netos de 4 e 5 anos, inocentemente, lavavam, no tanque, um casal de pintos coloridos, presente do primogênito. Anita, a velha cozinheira, é quem deu o alarme, interferindo na tragédia.
– Não acredito que deram pinto de presente para as crianças! – gritava a Francis indignada.
– E cor-de-rosa ainda por cima! – completava o Charles.
– Qual o problema? – quis saber o primogênito. Quando meninos, adorávamos ganhar pintinhos de presente, ou já se esqueceram disso?
Pronto, acabou o clima. Voltaram à mesa em silêncio, ora interrompido pelo choro compulsivo dos exterminadores de pinto, como provocavam as primas.
Após o almoço, o clima já estava calmo, e todos seguiram para a capela, uma pequena gruta construída no fundo do quintal desde o tempo em que começaram a se entender como gente. A reza foi puxada pela mãe, seguida pela filha carmelita. Reunidos, cantaram juntos a oração de são Francisco e compreenderam que, no mundo, apesar das pequenas diferenças e desavenças, o amor estava acima de tudo. E que, naquele momento, se fazia presente no seio dessa grande família.
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