Dentre os mais importantes instrumentistas do século XX, duas mulheres se destacam: a pianista argentina Martha Argerich e a violoncelista inglesa Jacqueline du Pré. A primeira segue firme e forte em sua carreira, já com mais de 70 anos (nasceu em 1941). A segunda (Oxford, 1945) é uma mistura relativamente comum de sucesso artístico e fracasso existencial. É evidente que eu poderia discutir o sentido de sucesso ou fracasso existencial, mas não me permitirei essa digressão, aliás interminável. Direi apenas que ela falhou, ou que sua vida falhou quando não deveria falhar.
FÁLICO E LÚDICO
Como todo instrumento musical, o violoncelo é lúdico, embora não tanto quanto o violão, o cavaquinho e o pandeiro, que permitem acrobacias divertidas e doces deleites. Acresce que violão é quase sempre o primeiro instrumento de todo iniciante, pelo menos no Brasil. Quem se imagina músico começa por ele.
Mas o violoncelo é também fálico, talvez o único instrumento fálico. Embora grande (ou por isso mesmo), é inserido entre as coxas e literalmente abraçado. Ao tocá-lo, quase sempre o artista, para conseguir usar o arco com mais destreza, joga o pescoço para trás e, muitas vezes, fecha os olhos, arreganha os dentes, parece respirar com dificuldade. É inevitável sentir a presença do erotismo.
JACQUELINE
No auge da carreira, em 1971, começou a perder a sensibilidade dos dedos, sendo diagnosticada com esclerose múltipla em 1973, quando também realizou o último concerto. Decaiu lentamente, morrendo em 1987, aos 42 anos. Suas derradeiras imagens são muito feias, lembrando Stephen Hawking, o grande físico teórico. Transfigurada, atrelada a uma inseparável cadeira de rodas, lá está ela, o retrato vivo do desamparo. Mas não deixou de rir e sorrir, olhos apertados e dentes tortos.
BARENBOIM
Em primeiro de janeiro de 1966, Jacqueline encontrou Daniel Barenboim, pianista e regente argentino de nacionalidade quádrupla: argentina, israelita, espanhola e palestina. Desconheço caso similar. Paixão à primeira vista, lógico. No ano seguinte ela cancelou todos os compromissos, se converteu ao judaísmo, voaram para Israel e lá se casaram.
O filme de Christhofer Nuppen, “The Trout”, rodado em Londres em 1969, gira em torno de um concerto célebre do quinteto homônimo de Schubert e reúne cinco amigos inseparáveis, exceto pela morte: Jacqueline (violoncelo), Daniel (piano), Izaack Pealman (violino), Zubin Mehta (baixo) e Pinchas Zukerman (viola). Na época, todos eram jovens (Zukerman tinha 22 anos) e começavam a aparecer na cena mundial.
PULANDO O MURO
No início dos anos 1980, quando Jacqueline já estava doente há quase uma década, o maestro Barenboim conheceu a pianista russa Elena Bashkirova. Para quê? Desse relacionamento nasceram dois filhos, em 1983 e 1985. Daniel se esforçou para esconder sua relação e conseguiu. Jacqueline morreu sem saber de nada.
WEST-EASTERN DIVAN ORCHESTRA
Em 1999, Daniel foi um dos fundadores dessa orquestra, sediada em Sevilha, na Espanha, formada, como sugere o nome, por músicos de várias nacionalidades: Egito, Irã, Israel, Jordânia, Líbano, Síria, Palestina e Espanha. Bela e exemplar mistura de povos, credos e raças, num claro desafio a preconceitos, conflitos e humilhações. Sim, a arte pode e deve ser política, o que nunca a impediu de ser arte.
Em 2004, o mesmo Barenboim recebeu, em parceria com outro violoncelista notável, Rostropovich, no parlamento de Israel, o prêmio Ricardo Wolf, por sua atuação em favor dos direitos humanos e da paz mundial, no valor de 100 mil dólares.
Sua metade foi destinada à manutenção da orquestra. O discurso que pronunciou ao receber o prêmio irritou a então ministra da Cultura e os deputados conservadores, mas foi aplaudido com entusiasmo pelos outros parlamentares. Nesse discurso, questionou a permanente violação dos direitos humanos pelo governo israelita em relação aos povos vizinhos, isso em pleno parlamento. Coragem nunca lhe faltou.
O CONCERTO DE ELGAR
Um dos momentos culminantes da carreira de Jaqueline foi a interpretação do concerto para violoncelo de Elgar, obra que todo violoncelista executa mais dia menos dia. Faz parte do repertório clássico, como teste de talento e prova de fogo.
Emociona ver a ainda jovem artista sob a regência de seu já marido, Barenboim, dando tudo o que podia, com a grandeza de sua capacidade de intérprete. De vez em quando, numa das breves pausas permitidas pela intensidade sonora, um olhar de aprovação e aplauso mútuo. Como se a plateia não tivesse a menor importância.
LENGA-LENGA
Todo esse lero-lero não nasceu por acaso. Há poucos dias, buscando performances do concerto de Elgar no Youtube, encontrei uma versão de 2010, realizada na mesma Oxford de Jacqueline. A violoncelista era a norte-americana Alisa Weilerstein, de óbvia ascendência judia, sob a regência de – quem diria! – Barenboim.
Fantástico, não é? O mundo dá tantas voltas que acaba voltando ao mesmo lugar, como uma cobra mordendo o próprio rabo.
Talvez a arte tenha realmente acabado, ou esteja agonizando, respirando por aparelhos, qualquer coisa do tipo. Como escreveu recentemente Ronaldo Brito (voltarei ao assunto): “A partir dos anos 1980, a arte entrou no universo da indústria de massa (...) pela inclusão no circuito da indústria do turismo e do entretenimento. Museus são as novas catedrais. (...) O novo artista é quase o funcionário de uma indústria”.
Como reagiria a intensa Jacqueline du Pré a essa tremenda banalização da arte?
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