Em algum momento entre a agulha encontrando a veia, e o conteúdo da ampola, divinamente entrando no corpo, aquele glorioso micro segundo onde se sente a dor indo embora, ficou fácil demais entender porque as pessoas usam drogas. Eu incluso, claro, com meu tabaco, minhas cervejas, meu Puran T4 e neosaldinas muito ocasionais, além de umas porcarias que a gente acaba lendo ou escutando de vez em quando.
No caso, o que me chapou foi uma dose maravilhosa de um analgésico muito do comum, que singularmente fez desaparecer a dor insuportável que eu sentia devido a (mais) uma maldita crise de pressão ocular, dor que desta vez fez o favor de ir conhecer cada centímetro possível da minha cabeça. Sensação semelhante tive quando alguns dias mais tarde (e o nome disso é inferno pós-astral, anotem) quando o dentista espetou outro remédio na gengiva e, feito varinha mágica, fez desaparecer aquele sofrimento que barrava meu sono há dias.
E alguns ainda minimizam o poder da curiosidade: saí do hospital doidinho para conhecer morfina, potente e legendário analgésico.
Drogas: há quanto tempo fiquei sem admirar vocês? Eu, que sempre recusei aquele “remedinho de dor de cabeça” para curar a ressaca? Que passei a vida inteira na base da homeopatia e só fui conhecer uma rotina de medicações industriais quando, aos vinte e tantos, o hipotireoidismo chegou? Que tantas vezes recusei aquela ida suspeita ao banheiro da festa, aquela pílula que te acende, aquele quadrinho que derrete e te leva pra longe? Me rendi, momentaneamente e maravilhado, aos poderes da química. Bem vindo aos pós-trinta anos!
Drogas são a anestesia da alma. Enfermeiras supremas. Lícitas ou não, lúcidas ou não, simples e complexas ou não, feias, bonitas, tristes ou alegres. Ou não. Não são a única forma de curar todos os males. Não são sempre estritamente necessárias. Mas estão aí, disponíveis e sedutoras, para gente se esbaldar, e ninguém faz questão de esconder já que são usadas, citadas, apologizadas em uma porcentagem faraônica de produtos da indústria cultural, midiática e da informação.
A culpa é de quem? A culpa é da gente, oras. Do rico, do pobre, do direita e do esquerda, do ateu e do religioso, de todos. Do avô que tomava a cachacinha que passou o lenço para o filho cheirar lança perfume que influenciou o neto a experimentar outras coisas que o tataraneto ainda vai descobrir graças ao poder da ciência, da indústria farmacêutica e da curiosidade dos doidões– do chá de fita cassete à Timothy Leary– amém. Da avó que tomava religiosamente o remedinho para a dor de cabeça e a filha aprendeu que todos os males da neta se resolviam na farmácia que gerou uma tataraneta meio triste e distraída que precisava de um tarja preta para, digamos, socializar.
Nada mais careta– ou seja, anti-drogas– que essa escadinha geracional tosca que propus. O que sei, claro, é que existem usos e funções. De todos os tipos. Alguns já estão logicamente aceitos e entronizados na gente. Outros ainda estão em aberto, e enquanto isso, pagamos, todos, um preço absurdo por esta questão que vem malhada antes da gente nascer.
E se a culpa é de todos, a culpa então é de ninguém, e talvez não seja uma questão de culpa. Talvez seja uma questão de educação, orientação, possibilidades, oferecimentos, entradas e saídas melhor sinalizadas. Porque parece brincadeira quando alguém se surpreende com o alto consumo de crack no Brasil. Parece brincadeira quando alguém se surpreende com os sedutores comerciais de cerveja. Parece brincadeira quando alguém se surpreende com um helicóptero cheio de cocaína voando por aí.
E claro, parece brincadeira quando se surpreendem com o aumento no consumo de anti-depressivos no Brasil. Toda cura para todo mal, versão tradicional e família.
O que não é brincadeira é o tanto que, na real, na real mesmo, não levamos nada disso a sério. Falar em drogas é se render ao simplista campo da hipocrisia da qual todos nós estamos inseridos, ainda mais preocupados em enfiar o dedo na cara dos outros e deixar a outra mão livre para empurrar um remedinho qualquer goela abaixo. É fácil se livrar desse paradigma? Não, mas viver também não é, meu chapa. E viver sem as drogas, assumo, derrotado, é pior ainda.
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