Rock in Rio

1985, eu fui!

Fãs relembram a primeira edição do evento, em 1985, quando o país vivia a euforia da abertura democrática

Por Alex Bessas
Publicado em 16 de setembro de 2017 | 03:00
 
 
 
normal

Janeiro de 1985. Vivendo 21 anos sob tutela de um regime militar, a sensação do país às vésperas de uma eleição, ainda que indireta, do primeiro presidente civil desde o Golpe de 1964 era de otimismo e esperança. Enquanto em Brasília um colégio eleitoral definia o páreo presidencial, disputado entre o paulista Paulo Maluf e o mineiro Tancredo Neves (1910 – 1985), no Rio de Janeiro era o rock quem dava o tom e o ritmo dos debates de então. Por lá acontecia a polêmica primeira edição do Rock in Rio, celebrado à época como o maior festival de rock do mundo.

Com ressaca pela frustrada campanha pelas eleições diretas – no ano anterior, centenas de milhares de pessoas foram às ruas nas principais capitais do país pedir a aprovação da emenda Dante de Oliveira, que reinstaurava as eleições diretas para presidente, que não foi aprovada – ter um presidente civil era um alento para muitos brasileiros e, claro, essa expectativa contaminou o festival.

“No Brasil, naquela época, a gente respirava política”, rememora Rodrigo Santos, baixista do Barão Vermelho. Naquele 1985, é verdade, ele ainda não integrava a banda, mas aos 24 anos, da plateia, assistiu ao show onde Cazuza mudou trecho da música “Pro Dia Nascer Feliz”, cantando no lugar “pro Brasil nascer feliz”, para celebrar a vitória de Tancredo Neves e o surgimento da Nova República. 

Bem, agora, às vésperas da mais uma edição do Rock in Rio no Brasil, o debate político volta a ser pauta latente e rotineira no país. Passados 32 anos desde que a Cidade do Rock foi erguida pela primeira vez, o festival idealizado pelo carioca Roberto Medina volta a acontecer (pela sétima vez) na capital fluminense nesta e na próxima semana.

Desta vez, todavia, a sensação não é mais de “esperança e festividade, presente no festival e fora dele”, como menciona Rodrigo acerca do evento em 1985. Doutor em história pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Paulo Gustavo da Encarnação se dedica a estudar a estrutura do rock no Brasil e em Portugal. Ao contrapor essas duas realidades, indica que, agora, “o clima nacional é de desânimo, desesperança e até mesmo de intolerância...”. 

A verdade é que o próprio idealizador do projeto já verbalizou tal abatimento. Em entrevista à revista “Veja”, Medina chegou a declarar que, “se nada mudar nesse país, esse será meu último Rock in Rio”. Aliás, Rodrigo, que se apresenta no festival na próxima quinta (21), acredita que o evento é, acima de tudo, “uma manifestação de massa que celebra a música”. Mas pondera que o clima no país acaba impactando o festival. “É impossível dissociar uma coisa (a música) da outra (a política), principalmente se estamos falando de rock”, analisa. 

A afirmação do músico encontra eco nas análises de Rodrigo Merheb, pesquisador e autor do livro “O Som da Revolução” (Record, 2012). Ele avalia que, como Brasília, a cena musical do país passava por um momento de transição. “Anteriormente, por conta da censura, os artistas recorriam a metáforas e alegorias... Então, essa outra geração tinha outra forma de se expressar, mais radiofônica”, propõe, adicionando que o Rock in Rio tem papel importante nessa passagem, “deixando o país mais pronto para aquele novo jeito de fazer música”. Paulo Gustavo Encarnação enfatiza que elementos políticos continuaram a ser cantados pelos artistas. “As letras politizadas permaneceram em um sentido amplo, falando de ambientalismo, de lazer...”, indica.

Polarização

O pesquisador lembra que o festival acendeu críticas “que, na verdade, já vinham sendo feitas desde a Jovem Guarda, na década de 1970”, examina Encarnação. Ele situa que a oposição se dava em dois campos: ser “um produto importado” e “criar uma juventude alienada”. 

No artigo “Rock in Rio – Um Festival (im) Pertinente à Música Brasileira e à Redemocratização Nacional”, o pesquisador demonstra como setores antagônicos se opunham ao evento. Segmentos progressistas e conservadores da Igreja Católica, o Partido Comunista Brasileiro, críticos musicais e até o próprio Tancredo Neves se manifestaram contra o evento. O presidenciável, aliás, voltou atrás depois de um encontro com Medina.

Na verdade, ainda hoje há muita polêmica no que diz respeito ao significado do Rock in Rio para o país. Merheb lembra que o festival nunca levantou bandeira no campo político. “Estávamos vivendo uma abertura gradual, algo que já vinha acontecendo há seis anos...”, pontua ele. Por isso, “com o ambiente repressivo da ditadura se dissipando”, foi possível “criar uma atmosfera favorável a esse tipo de evento”, analisa. 

Assim, “mesmo a eleição de Tancredo acontecendo paralelamente ao festival (no dia 15 de janeiro), é importante lembrar que o Rock in Rio foi organizado enquanto a ditadura ainda vigorava”, argumenta Merheb. No mesmo sentido, o produtor cultural Claudio Prado vê a oportuna sintonia do festival com o período de redemocratização do país apenas como ligeira coincidência. “Pensar que as duas coisas andaram juntas é ingenuidade”, afirma. Para ele, afinal, “o Rock in Rio é a usurpação do termo rock”.

Um dos organizadores do Festival de Águas Claras, no interior de São Paulo, que teve quatro edições entre 1975 e 1984, Prado menciona que, no auge da geração hippie, calças rasgadas eram regra porque eles se recusavam a comprar um novo produto. “Hoje, as butiques vendem calças que são rasgadas por máquinas”, contemporiza, fazendo uma analogia sobre como a indústria absorveu o que era um ato de protesto. “O Rock in Rio é uma calça rasgada desfiada pelas gravadoras”, finaliza ele.

Reabertura

Ressalvas feitas, Merheb afirma que sim, o festival funcionou como um marco na música brasileira e para a abertura de público e mercado deste setor no país. “Foi marcante por três razões: promove um grande evento, cria interlocução com o mundo e leva a cultura do rock para o mainstream”, analisa. O pesquisador lembra que, até 1985, o país abrigava alguns festivais, como o de Saquarema, em 1976, e o supracitado de Águas Claras, “mas eram mais incipientes”. 

“E grandes bandas vinham, mas apenas esporadicamente...”, frisa. Para ele, “aquele momento foi essencial para mostrar que o Brasil podia ser sede de algo grande”. Em se falando da ampliação do público que consumia rock no país, é depois da primeira edição do festival que o movimento se torna mais expressivo. “Transmitido pela TV Globo, o Rock in Rio fez estourar ainda mais as bandas de rock nacionais”.

Embora, como já ressalvado, ainda não fizesse parte do Barão Vermelho, Rodrigo Santos já era músico em 1985. Ele lembra que o Rock in Rio foi, para os artistas, um divisor de águas. “Antes, para comprar um amplificador, você precisava conhecer um amigo de um amigo que fosse para Nova York e precisava ter muito dinheiro para importar esses produtos...”, lembra.

“Quando vêm aqueles dez dias de shows e (o evento) é um sucesso, as empresas começam a olhar para o país”. Da perspectiva da história, Paulo Gustavo lembra que até mesmo a queixa por mais espaços para bandas de rock se dilui após o festival.

Os Brasis do Rock in Rio

“O primeiro show da democracia brasileira!”. Foi assim que o ator global Kadu Moliterno introduziu a apresentação do Kid Abelha e os Abóboras Selvagens no dia 15 de janeiro de 1985, pouco após o colégio eleitoral definir Tancredo Neves como presidente do Brasil. O pesquisador Paulo Gustavo Encarnação menciona que, naquele dia, o quinto dos dez dias do evento, a ironia se fez presente entre chuva, lama e muita música.

Acontece que estudantes que haviam acabado de passar no vestibular provocavam o candidato derrotado. “Eu passei no vestibular e o Maluf foi reprovado pelo colégio”, debochavam.

Entre os 1,38 milhões de pessoas que passaram pelo festival estava Maurilo Andreas. Então com 13 anos, ele não tinha muita ideia do que acontecia em Brasília, mas sentia uma atmosfera diferente ali. Baixista do Barão Vermelho desde 1992, Rodrigo Santos também curtia o Rock in Rio em meio ao público. Então com 24 anos – e, portanto, mais consciente do que aquele momento significava para o país –, ele arrisca algumas hipóteses para explicar o que tornava aquele clima especial. Entre as observações, “era como se a gente tivesse vencido a censura”, propõe. A afirmação do músico, por sinal, indica outra oposição entre a sensação vivenciada no Brasil daquele período e o momento atual, quando acontece a sétima edição do evento. 

Às vésperas do início do festival, depois de um boicote coordenado pelo Movimento Brasil Livre (MBL), o Santander Cultural anunciou, no último domingo (10), a interrupção da mostra “Queermuseum”, que estava instalada no Rio Grande do Sul. Em trecho de uma comunicação interna do banco vazada pela imprensa, a instituição menciona que as críticas ao cancelamento da exposição “têm enfoque na censura – ‘como não se via desde a ditadura’, para os mais fervorosos”.

Partes de algo maior

Passados 32 anos daquele janeiro, o belo-horizontino Gustavo Schettino, 48, guarda lembranças tão positivas que, ao ser contactado pelo Pampulha, fez questão de agradecer, emocionado, “por me trazer essa boa memória”. “Três coisas marcaram o festival para mim: no dia 16, a chuva, no dia 18, a lama, e, no dia 20, as britas”, brinca Schettino, hoje radicado em Londres. Tais dificuldades, diz, atestam o poder de transcendência da música. “Quando os shows aconteciam, nada mais importava”, atesta. 

Uma série de acasos levou o rapaz ao evento. “Minha infância não foi fácil. A família era grande, não tinha como comprar ingressos”. Quando um tio ganhou cortesias em um sorteio, na empresa em que trabalhava, deu-lhe de presente.

Maurilo Andreas, por sua vez, chegou ao Rock in Rio por meio de uma artimanha do pai. “Ele comprou os ingressos escondido. Só contou para a minha mãe no Natal, a menos de um mês para a viagem”, ri. O hoje publicitário, porém, não consegue censurar a aventura. “Valeu muito!”. Inclusive os perrengues. “O grande lance era dançar em cima da lama”.

Ex-integrante do Hanoi Hanoi, um dos grupos mais cultuados dos anos 80, o mineiro Affonsinho esteve no evento, mas não se considera propriamente um saudosista. À época com 23 anos, ele lembra que considerou o Rock in Rio “menos rock n’roll do que o que os shows da Rita Lee e Tutti Frutti ou Mutantes faziam dez anos antes”. E mesmo assumindo que o clima político vivido pelo país perpassava o festival, entende que o que imperava nos 250 mil m² da Cidade do Rock era o ar de novidade e a grandiosidade da iniciativa.

O Rock in Rio, diga-se, foi o primeiro show de rock na vida do carioca João Siqueira. À época, o hoje chef de cozinha (aqui, em BH) tinha 13 anos, e, filho de militar, morava em Brasília. “Nem pensava em ir, mas fui passar férias no Rio”. Lá, o frenesi do evento o contagiou – ele foi à abertura e aos dois dias finais. A lama fez parte da aventura. “Tinha acabado de ganhar um tênis de Natal, e, lá, enfiei o pé na lama!”, brinca.

Andreas foi a dois dias do evento (11 e 13 de janeiro) e crava o show do Queen como o mais marcante. “Ver o Freddie Mercury... Lembro da namorada de um dos rapazes da nossa turma chorar muito após o espetáculo!”. 

Aliás, Andreas guarda a luva distribuída no show. A emoção da plateia cantando “Love of My Life” junto a Mercury também marcou Siqueira. Além disso, foi lá que ele descobriu bandas como AC/DC e Whitesnake, que passou a ouvir em casa. Por sua vez, Schettino elege o show do Yes como o favorito. E Affonsinho demarca como fundamental em sua trajetória ter vivido o rock jazzístico de George Benson naquele ano. 

Os quatro se referem com afeto à apresentação das bandas nacionais Blitz, Kid Abelha, Paralamas do Sucesso, Barão Vermelho, Ney Matogrosso, Erasmo Carlos e Gilberto Gil. A diversidade, aliás, deu o tom, lembra Andreas. “Nunca foi um evento só de rock”. Inclusive, para ele aquele era um momento em que “o Brasil deixava de ser só uma caricatura de samba e futebol”. “A partir dali, a gente notou que podia ser moderno, que fazia parte de algo maior”.

em 1985...

Da noite para o dia Em entrevista para um especial do Multishow, Roberto Medina revelou que “o festival não foi planejado ao longo do tempo”. A ideia teria surgido “em uma noite”.

Bênção de Frank Sinatra Antes do Rock in Rio, Medina havia realizado o antológico show de Sinatra no Maracanã. Mas, para o festival, ele havia recebido mais de 70 “nãos” de investidores; Arguto, o idealizador do evento procurou o cantor americano, que convocou uma coletiva de imprensa para anunciar o Rock in Rio, mesmo sem a garantia dos investidores.

Maior festival do mundo Depois da coletiva convocada por Sinatra, manchetes de importantes jornais do mundo, à época, exaltavam: “o maior festival de rock do mundo vai acontecer no Brasil”. Com a repercussão, patrocinadores formaram fila.

Profecia Além de todas as dificuldades em erguer a Cidade do Rock e da oposição de vários setores, a organização lidou com o boato de suposta profecia de Nostradamus, que falava da queda de um meteoro em uma cidade da América Latina em um grande evento de música.

Salvem os morcegos Por pressão de entidades de proteção aos animais, Ozzy Osbourne assinou contrato em que estava proibido de comer morcegos no palco, o que supostamente fazia.

Para ver

Da telinha Longe da Cidade do Rock, os shows desta edição do festival podem ser acompanhados pela TV e pela web. Entre os canais pagos, o Multishow realiza a cobertura do Rock in Rio, que também integra a programação da Rede Globo e é transmitido na internet pelo Portal G1.

 

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!