Nonada. É com essa palavra inventada que João Guimarães Rosa começa o romance épico “Grande Sertão: Veredas”. Descrevendo algo insignificante, de pouco ou nenhum valor, o termo é considerado genial não só pela repetição da negativa (“non” e “nada”), mas por sua cadência, que beira o lúdico. E, apesar de só aparecer seis vezes na obra, que é uma das mais relevantes da literatura brasileira, a palavra é reconhecida imediatamente por qualquer leitor de língua portuguesa.
Com boas versões em línguas como italiano e espanhol, a obra é lida fora do Brasil, mas, sem uma tradução dos neologismos do autor para o inglês, ela não chega a ser universal. Isto é, até agora. Há dois anos em busca de patrocínio, a australiana radicada em Santos Alison Entrekin anunciou na última semana que conseguiu quem bancasse um dos maiores desafios de sua carreira: fazer a versão definitiva de “Grande Sertão” para o inglês, transpondo “nonada”, assim como “enxadachim”, “circuntristeza” e “taurophtongo”, para a língua de Shakespeare.
“A Clarice (Lispector) foi reconhecida no exterior através do trabalho do Benjamin Moser. Enquanto isso, o Guimarães Rosa, o gigante, não teve uma re-tradução. É um trabalho importante para o Brasil, para que o público de outras línguas tenha esse pilar da literatura brasileira, que ninguém teve acesso. É preciso preencher essa lacuna”, defendeu a tradutora à reportagem, com seu português impecável. Alison começa o trabalho em março de 2017 com o apoio do Itaú Cultural. A previsão é que ela passe três anos se dedicando exclusivamente à obra de Guimarães Rosa.
Contato. O primeiro contato de Alison com o livro que pretende traduzir foi aos 27 anos, em 1998, quando se mudou para o Brasil. “Eu não tinha condições, patinava nas páginas. Se é difícil para um nativo, imagina para um gringo. Só depois que li realmente”, confessa. Somente quando Alison já tinha em seu currículo as versões para o inglês de obras de Paulo Lins e Cristovão Tezza, além da própria Clarice Lispector, ela voltou à obra. Ela havia sido abordada pela agência literária que a representa, perguntando se ela se interessaria em se dedicar à obra de Guimarães Rosa. “Disse que, a princípio, sim, mas teria que fazer uma amostra para ver se daria para traduzir. Ler um livro e apreciá-lo, como leitor, é uma coisa. Traduzir, pôr a mão na massa, é outra. Pausei outro projeto, fiz o teste, e o livro me fisgou”, recorda Alison.
Processo. “É uma coisa um pouco sem fim”, confessa a tradutora. Seu processo começa com um debate com Sérgio Montero (professor de literatura brasileira e doutor pela USP) sobre a obra, passa por oficinas com a tradutora do inglês para o português Daniela Travaglini e envolve mandar suas dúvidas para outros colegas de profissão. “‘Grande Sertão: Veredas’ é uma obra que cada pessoa tem uma visão, com a qual cada um tem seu relacionamento. Então é importante que eu traduza de acordo com a percepção dos brasileiros. Eu falo português bem, mas sou uma gringa”, avalia.
Com uma primeira versão pronta, ela começa a segunda parte do trabalho. “Tenho que transpor a magia da obra, a alquimia linguística de Guimarães Rosa. Não posso só pegar um neologismo e passar para o inglês. Tenho que trabalhar a poética. E, por fim, tenho que namorar a versão em inglês. E quanto mais tempo tenho para esfriar, mais ideias vou tendo”, explica.
Patrocínio. Comprometida com o projeto, surgiu o problema: quem bancaria o trabalho? “Editoras do exterior não conseguiriam. Elas têm verba para livros normais, não têm como se comprometer com um projeto que pode demorar dez ou vinte vezes mais tempo”, conta Alison. E, entre reuniões e tentativas frustradas de entrar numa lei de incentivo, se passaram dois anos até que o Itaú Cultural anunciasse, na última semana, que vai bancar o trabalho de Alison e de seus consultores.
“Três anos é o mínimo de tempo que a gente imagina. Isso com ela trabalhando somente com esse livro”, frisa o gerente do núcleo de audiovisual e literatura do Itaú Cultural, Claudiney Ferreira. Além da tradução, o instituto vai criar conteúdo em cima do processo de Alison. Estão previstos um blog sobre o processo, oficinas dadas pela tradutora e a gravação de entrevistas ao longo dos três longos anos de trabalho.
Trecho
A tradutora australiana Alison Entrekin cedeu ao Magazine um trecho de seu trabalho:
Original de Guimarães Rosa:
“O senhor não é como eu? Não acreditei patavim. Compadre meu Quelemém descreve que o que revela efeito são os baixos espíritos descarnados, de terceira, fuzuando nas piores trevas e com ânsias de se travarem com os viventes – dão encosto. Compadre meu Quelemém é quem muito me consola – Quelemém de Góis. Mas ele tem de morar longe daqui, na Jijujã, Vereda do Buriti Pardo... Arres, me deixe lá, que – em endemoninhamento ou com encosto – o senhor mesmo deverá de ter conhecido diversos, homens, mulheres. Pois não sim? Por mim, tantos vi, que aprendi. Rincha-Mãe, Sangued’Outro, o Muitos-Beiços, o Rasgaem-Baixo, Faca-Fria, o Fancho-Bode, um Treciziano, o Azinhavre... o Hermógenes... Deles, punhadão. Se eu pudesse esquecer tantos nomes... Não sou amansador de cavalos! E, mesmo, quem de si de ser jagunço se entrete, já é por alguma competência entrante do demônio. Será não? Será?”
Tradução de Alison:
“Are you like me, sir? I didn’t buy a word. What it is, cording to my pal Quelemém, is inferior, disincarnated spirits, lowest of the low, running muck in the murkiest underworld, yearning for contact with the living – they latch on. My pal Quelemém comforts me a lot – Quelemém from Góis. But he has to live a long way away, in Jijujã, Brown Palm Way... But hey, I’d wager that – bedevilled or with latchons – you’ve happened cross all sorts yourself, sir, men, women – no? For my part, I’ve seen so many I’ve learned. Mama-Neigh, Blood-Sucker, Lippy, Slit-Beneath, Cold-Blade, Goat-Boy, a certain Treciziano, Azinhavre... Hermógenes... Whole bunch. If only I could forget all the names... I’m no horse wrangler! Sides, if thoughts of outlawry a man entertains, it’s that the devil’s already wangled his way in. Wouldn’t you say?”
Harriet de Onís
Se der errado, tente de novo
Alison Entrekin pretende fazer a tradução definitiva de “Grande Sertão: Veredas”, mas essa não será a primeira transposição da obra para o inglês. A primeira foi publicada em 1963 por Harriet de Onís. “É considerada uma tradução ruim, apesar de interlocução da autora com Guimarães Rosa”, resume o gerente do núcleo de audiovisual e literatura do Itaú Cultural, Claudiney Ferreira.
Harriet, uma conhecida tradutora do espanhol para o inglês, assumiu a missão numa época em que várias versões de “Grande Sertão” eram feitas. E, muito interessado no trabalho dos tradutores, João Guimarães Rosa mantinha um contato intenso, por meio de cartas, com todos eles. “Ele tinha uma postura totalmente diferente com cada um. Com o tradutor do italiano, Rosa percebia que ele era meio escritor, conseguia recriar o estranhamento da obra, e ele incentivava isso. Enquanto a tradutora norte-americana… O português não era o forte dela. Ela procurava soluções que levavam ao inglês mais simples. E ele percebeu isso. Às vezes instigava, pedia algo mais James Joyce, e às vezes permitia, falava que (o jeito dela) ia encontrar um público maior”, conta Alison, que pretende usar as cartas de Guimarães Rosa como guia nos próximos três anos. (FD)